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26.9.20

Eu não sou besta pra tirar onda de herói

Alan Moore & Dave Gibbons's Watchmen IV, p. 19
Às vezes eu venho escrever aqui sobre temas que nem queria, mas eles vão acontecendo na minha vida como nós em um novelo, é tão engraçado.

Desisti de comentar minhas opiniões políticas, né. Na verdade, eu desisti de comentar de um modo muito padronizado que nossas gerações Millennium e Z comentam, seja em infinitos comentários nas redes sociais, ou em reels e tiktoks. Apaguei o twitter três vezes nos últimos 10 anos sempre pelo mesmo motivo, e não tenho a mínima vontade de voltar. Eu decidi me isolar de um modo parecido com aqueles hippies do apocalipse em filmes de fim do mundo. Na verdade, decidi ser quem sempre fui, né? Uma pária.

Roland Emmerich's 2012. Woody Harrelson's Charlie Frost (juro que não lembrava que essa cena continha um vulcão hahaha)

Acontece que, há algum tempo já, a palavra "herói" vem flutuando na minha frente, em todas as situações possíveis. Aproveito para escrever esse texto hoje, um dia após a chegada do meu bem mais precioso do momento, que é a HQ de Watchmen.

Lembro da desmistificação dos heróis nos tempos da faculdade. Tem um livro que despe a imagem de Tiradentes, da Justiça, da República, que é do José Murilo de Carvalho - A Formação das almas: o imaginário da República no Brasil. Faz tempo que li, e não inteiro, mas jamais me esqueci de como nossa República foi uma criação de uma elite militar e liberal, e por "liberal", não se faz menos racista. Não sei se minha explicação está atualizada, pesquise se você quiser, porque eu desisti da Universidade também hahaha. Me lembro do professor comentando como Tiradentes foi posto como um coitado à imagem de Jesus Cristo, que foi desmembrado e exposto em praça pública, um herói da independência com fama tardia. Enfim, essa historiografia do 19 é uma bagunça, uma maquiagem, e também o registro e a face de uma época. É e não é real. Mas não é isso que vou comentar. O que vou comentar é que fiquei com esse anti-heroísmo na minha cabeça. Consigo admirar personagens históricos, literários, mas sem nem fazer pouco, nem muito caso. São pessoas. Ou personagens. Ou pessoas-personagens.

Com o propósito de despir também em praça pública essas criações do passado, muitos pesquisadores e estudantes criaram discursos tão rasos quanto os que eles queriam criticar, fazendo com que muitas obras do passado fossem rechaçadas, sendo que, querendo ou não, elas têm valor. Histórico, né. Historiador é detetive, trabalha com fatos, feitos. Tudo é precioso. Claro que somos e devemos ser críticos, mas uma coisa que detesto na minha profissão é uma ironia pobre cozida e reproduzida no meio acadêmico. Virou piada chique dizer que o Imperador montou num jumento e estava com dor de barriga, e que o quadro do paraibano Pedro Américo era uma "men-ti-ra". Não, né gente. É uma interpretação artística que significa algo subjetivo, simbólico. Tem a ver com onde ele estudou, que foi na Itália, com quem encomendou a tela, com a mensagem que queriam passar. É tipo a gente hoje fotografando para o instagram com milhões de efeitos e objetos para compor a imagem: quem lê com pisca-pisca aceso, bonequinhos e folhas secas no chão? Espero que ninguém. É bonito e tudo mais, mas é tão criação quanto.

Mas também essa não é a crítica que quero fazer, há! O que eu acho engraçado é que (isso não é o meme) tanta gente se mostra diametralmente oposta a criações do herói do passado, ou a padrões de pensamento, que criam um espelho desses padrões e crenças.

Desde o tema já bastante discutido - e talvez já esquecido - da iconoclastia em obras públicas feitas em homenagem a figuras assassinas e opressoras, a palavra "herói" tem me assombrado. Porque vi pipocar postagens do tipo "verdadeiros heróis que deveriam ter tido estátuas em sua homenagem". Espera: até ontem herói não era uma criação, e os discursos pendiam para "não existe herói, isso tudo é criação de um ser perfeito super-humano ou não-humano que salva o dia feito as Meninas superpoderosas"?

E não parou pelas postagens. Estou lendo um livro muito bom sobre personagens brasileiras negras que não tiveram suas histórias contadas, mas já torci o nariz para cada momento em que li heroína, heróico, herói. Em algum momento da vida, e isso claramente é fruto de situações particulares e públicas, eu fiquei avessa à ideia de herói. Não só por causa da aula do Tiradentes. Nem porque é necessário destruir o pedestal do opressor sempre que possível. 

Meu negócio é o seguinte: pessoas são pessoas. Com feitos admiráveis, com feitos terríveis. Como a Jane Austen, que conversei hoje com a Mia como ela é boa escritora, mas aparentemente destruiu a imagem do gótico escrito por mulheres ou algo do tipo*. Ou o H. P. Lovecraft, que é o escritor de terror mais saboroso que já li, mas era racista, machista, entre outros -istas, o que combina com sua posição temporal, de gênero e geográfica, compreendo, mas nem por isso é menos errado ética, moral, politicamente. E, por H. P., por que não falar da transfobia da J. K. Rowling? Que mulher chata, meu deus do céu. Detesto ela desde quando decidiu que jamais continuaria a saga do bruxo-mimado-com-pais-horríveis, mas a cada semana inventava uma curiosidade sobre um personagem no twitter e dizia que sempre pensou nisso, só não disse antes. Enfim, a lista de pessoas com pensamentos terríveis e artes maravilhosas, ou vice-versa, é extensa e interminável, porque nenhum deles é Deus, muito menos herói. Mesmo aqueles que contribuíram bravamente para movimentos sociais e lutas armadas no Brasil e no mundo. Vocês acham que eu gosto do cangaço e da União Soviética porque sou iludida e acredito no suposto heroísmo de Virgulino Ferreira e Josef Stalin? Nope


Eu sei da violência, dos abusos, dos assassinatos. Não necessariamente concordo, e dizer que discordo seria mentir para mim mesma. Mas aconteceu e o tempo não volta. Nem quero que volte, amo ficção científica, mas sou avessa à máquina do tempo (porque tudo pode piorar). Tem um trecho de livro A Era dos extremos do Eric Hobsbawm que amo compartilhar há muitos anos:

A principal tarefa do historiador não é julgar, mas compreender, mesmo o que temos mais dificuldade para compreender. O que dificulta a compreensão, no entanto, não são apenas nossas convicções apaixonadas, mas também a experiência histórica que as formou. As primeiras são fáceis de superar, pois não há verdade no conhecido mas enganoso dito francês tout comprendre c’est tout pardonner (tudo compreender é tudo perdoar). Compreender a era nazista na história alemã e enquadrá-la em seu contexto histórico não é perdoar o genocídio. De toda forma, não é provável que uma pessoa que tenha vivido este século extraordinário se abstenha de julgar. O difícil é compreender.

Daí que estou fazendo um curso de empreendedorismo no Sebrae - sou expert em cuspir pra cima e receber o cuspe bem dentro do olho, pois detestei sempre tudo relacionado ao tema - e é óbvio que eles pregam esse discursinho Luciano Huck meia-boca de que a superação de um pobre que se deu bem na vida é coisa de herói. Aí a pessoa pobre que vê uma coisa dessas acha que "ah, é porque ele nasceu com a bunda virada pra lua; ele nasceu pra isso; podiam ter mais pessoas assim no mundo".

Lembrei agora do tempo em que eu trabalhava no museu e achavam uma pena não existir pessoas como o Conde (ele era empreendedor do 19), mas ninguém pensava (e nós tentávamos questionar isso) que elas podiam empreender nas suas vidas cotidianas, seja num estabelecimento ou num simples conselho ou abraço dado a quem precisasse de amparo. A gente sonha com pessoas impossíveis, e com isso se acha incapaz. Todo mundo é capaz de muita coisa. O que caga tudo é que todo mundo tem oportunidades diferentes (muita ou nenhuma), questões psicológicas tratadas ou pioradas, falta ou excesso de incentivo, descrença em si mesmo ou no outro, enfim, uma teia de empacamentos. E essa ideia de herói, pra mim, seja ele um opressor ou um sobrevivente, é balela, ajuda a empacar os "não heróis".

E é por isso que eu gosto de Watchmen. Alan Moore pegou o arquétipo do herói dos quadrinhos e meteu numa HQ cheia de nuances (que vocabulário mais intelectual Santa Cecilier), numa história onde os heróis existiam de fato numa América de Guerra Fria, mas despidos dessa aura de Super Homem e protetores do cidadão comum. É tudo um bando de gente errada, anticomunista, violentos até dizer chega, niilistas talvez, assassinos, que se deparam com mais uma mentira, mais um mito de criação do herói (nesse caso de criação de um bode expiatório para um genocídio), que desemboca numa falsa paz entre oriente (socialismo soviético) e ocidente (capitalismo). Eu AMO cada pedaço dessa história. Porque são antiheróis. Porque é desesperadora. É uma piada. É uma mentira! Como se aceita uma paz mentirosa, meu deus do céu? Que coisa horrível! Parece pesadelo sem fim que a gente vê tanto em seriados, filmes, livros, ou na vida mesmo. Aquela coisa perfeita, moldada, com final feliz. Não. A vida não é isso.

Enfim, eu só queria dizer que (busquem conhecimento):

Eu não sou besta pra tirar onda de herói
Sou vacinado, eu sou cowboy
Cowboy fora da lei
Durango Kid só existe no gibi
E quem quiser que fique aqui
E entrar pra história é com vocês

Não é que eu esteja dizendo que não devemos admirar feitos incríveis de pessoas que nos inspiram a ser melhores e lutar pelo que acreditamos. Nós devemos admirar feitos incríveis de pessoas que nos inspiram a ser melhores e lutar pelo que acreditamos. O que nós não deveríamos é pedestalizar as pessoas pelos seus feitos. Muita coisa aconteceu, ou não aconteceu, para aquilo ser extraordinário. Não é porque a pessoa é um iluminado por Jesus, ou "perfeita, sem defeitos" (o vocabulário da nossa contemporaneidade é o pior, credo). Mas o feito daquela pessoa, o trabalho dela é útil para nós termos como exemplo do que fazer ou mesmo do que não fazer daqui pra frente. Isso é História pra mim: conhecer o que aconteceu, pensar e agir no agora a partir dos exemplos bons e ruins do passado, e criar um futuro cada vez mais satisfatório para nós e os próximos da nossa maldita espécie, e das outras espécies também, coitadas, que têm que conviver com essa droga de Homo sapiens sapiens de nada.

Tem uma frase que detesto, que muita gente usa inclusive. Mas que me decepcionou quando vi sair da boca de um professor que gosto muito: "quando eu crescer, quero ser como fulana". Eu não, oxe. Quando eu crescer, quero ser como eu! Nasci eu, pra que diabos quero ser como o outro? E daí se o outro tem 300 páginas de currículo? Mansões, dinheiro, iate, mulheres?

Minha filosofia de vida sempre foi descobrir quem sou, o que vim fazer aqui, e contribuir com minha particularidade para a sociedade em que vivo. Por causa dessa bobagem de herói, fiquei anos aprisionada num suposto dever de militar com a minha geração de forma incansável e inumana contra o maldito capital e suas mazelas eternas. Claro que minha maior utopia é um misto de sociedade comunista com corporações de ofício medievais, mas eu nunca, jamais acreditei que veria o comunismo posto em prática enquanto eu viver. Vivo em sociedade porque as cartas jogadas na mesa são essas, mas eu não sei ser da multidão, não sei ter sororidade, porque acho falso, imposto (inclusive, pelo amor de deus, evitem me chamar de mana, não te dei intimidade pra isso), não sei gostar de classe média, mesmo a progressista (e nem pretendo). Não sou besta pra tirar onda de herói, é isso. Deve ser por isso que meu logo aqui é uma ovelha. Pensa que eu sei porque tem uma ovelha ali em cima? Eu não sei não! hahaha. Só amo a Revolução dos bichos. Mas dos animais, ironicamente amo os porcos. As ovelhas pra mim são a massa balindo encaminhando-se para o matadouro. Aquela ovelha ali deve ser a desgarrada.

Engraçado que Watchmen ia ser meu TCC esse ano. Mas acharam muito pouco "útil" para a sociedade brasileira escrever sobre uma HQ britânica. Porque "o que você poderia acrescentar numa pesquisa que os próprios conterrâneos do Alan Moore não já sabem?" - ouvi, há um ano e meio. Só ontem me veio em mente que eu poderia ter sustentado minha ideia e ter dito "bem, eu acrescento um pensamento em lingua portuguesa brasileira e trago essa crítica fantástica a tantos símbolos e situações sociais, políticas e econômicas que moldam nossas gerações pelos quatro cantos do mundo, usando um objeto popular e de lazer como ferramenta política. Mas meu tempo é outro. Slow ride...

Sei lá, eu não consigo ter paciência pra humanidade justamente porque é tanta besteira no meio de tanta coisa linda, eu fico biruta com isso. Agora eu vou embora, porque esse tema me ferve tanto que eu ficaria dias elaborando sobre cada parágrafo escrito. Quem sabe não vira uma tese de doutorado um dia, né?

Mas fica o recado, que é bem Pitty: seja você, mesmo que seja bizarro. Não acredite em meritocracia, mas também não desista de sonhar e, principalmente, agir, na medida do possível. Lutar, sempre. Viver é uma luta. Só se vive uma vez. Não acredite em heróis, não vale a pena. Isso é uma das diversas maneiras de hierarquizar, tornar exclusivo, extraordinário, impossível. Os bons feitos são ferramentas e combustível para mais boas ações, e não algo para se babar como objeto intocável num museu. Inclusive: os objetos dos museus são para conhecimento, não para ostentação ou baixar ainda mais a autoestima dos cidadãos comuns. Trate tudo com respeito, mas não seja subserviente, nem subestime - ou superestime, o que é muito pior - algo ou alguém.

Vive!

Meu deus, como amo - e sinto saudades de - um bar, uma briga, um carteado, uma sinuca, uma aguardente e toda essa ambientação de faroeste de cowboy!


* Aqui dois textos sobre Jane Austen e a sua sátira que vou ler depois, porque achei interessantíssimo: 

24.7.20

Realidade fantástica

Alejandro Jodorowsky's La Danza de la realidad, 2013

“Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico.”
Tzvetan Todorov [1]
Estou aprendendo a lidar com minha melancolia; quando conversamos conosco, é mais fácil evitar o tropeço. Tenho me dedicado ao oráculo, não como inocência, ignorância ou qualquer entendimento pejorativo que encontramos por aí, a torto e a direito. Comentários, muitas vezes, eles mesmos ignorantes. Oráculo para mim é literatura, terapia, alimento para a alma e para o espírito. Também predição, mas uma predição no sentido de observar bem os passos que são dados, porque há previsões disso e aquilo acontecer justamente por conta dos padrões de inconsciente coletivo que se apresentam e gritam, principalmente quando não queremos ouvir. Previsão meteorológica também não é 100%, mas nos faz ponderar se colocamos o guarda-chuva na bolsa, se pegamos um casaco, correto? E quantas vezes não nos deparamos com o sol escaldante numa tarde de inverno? Oráculo é para mim, portanto, a própria lamparina do eremita que ilumina apenas o pedaço de chão que nos cabe a pisada seguinte. E isso não é fatal, assim como a ciência também não o é. Entre o céu e a terra não há mesmo mais coisas do que pode suportar a nossa vã e vil filosofia?

Grigori Kozintsev, Iosif Shapiro's Hamlet (Gamlet), 1964
Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
Do que sonha a tua filosofia. 
Shakespeare [2]
Sempre fui uma menina onírica. Sonhadora. Passei minha infância brincando com espelhos, aos dois anos eu já respondia o palhaço no picadeiro de Solânea. Acreditava - e acredito - nas histórias folclóricas do meu pai. Assim como amava, era apaixonada por um livro de folclore brasileiro que ganhei da escola. Hoje em dia, acho que esse tema nem é abordado em sala de aula. Entendo a discussão sobre o assunto, mas não se apaga história: se conta e reconta, de diversos pontos de vista. Enfim.

Amante da mitologia, primeiro egípcia e depois grega - e hoje tenho vivido o contrário -, quando tinha raras oportunidades de ir à biblioteca da escola, era O Guia dos curiosos que eu ia buscar. Ou "Os melhores contos da mitologia" tal. Enxergava a matemática voando no universo: números voando no céu feito estrelas. 

Voltando ao lirismo. Assisti a um grupo de filmes em sequência esse mês que me fizeram chegar a um ponto da minha vida que eu nem tenho palavras para dizer. Mas eu chorei de amor, puro, desinteressado. E em todas as vezes era amor por mim. Não tenho autoestima baixa, e se tenho, nego. Mas não creio que tenha. Tenho, na verdade, alguma trava que me impede de desabrochar como deveria. E esses filmes me ajudaram um pouquinho.

Nunca havia assistido aO Mágico de Oz. Já li: lembro de ter o livro em mãos na sala de espera da minha dentista de infância, há uns sete anos. Depois doei o livro, adaptado, numa feira de troca na biblioteca da Etec, onde consegui um catálogo de Edvard Munch. Mas nunca havia sido uma paixão, ou uma vontade. Isso que O Mágico de Oz é a maior personificação do Pink Floyd nos cinemas para qualquer um, por mais que não tenha exatamente a ver, apenas suposições de fãs. Até hoje não assisti o filme sincronizado com The Dark side of the moon, mas consegui assisti-lo normalmente essa semana. Eu amei. Muito. Ri demais com aquele leão medroso, que me fez sonhar que eu fugia de leões, medrosa. Acordei gargalhando involuntariamente no dia seguinte, e rio só de pensar. Cada personagem, cada ator daquele filme... sei lá, é tão bem feito que nem tenho o que comentar. Uma obra de 81 anos extremamente melhor à enésima potência que qualquer filme caríssimo computadorizado dos dias atuais. Para mim, a coisinha mais linda é Judy Garland chorando feito menina. Minha psicóloga acha curioso o peso que eu dou às lágrimas, principalmente infantis. Acho poético demais.

Victor Fleming's Wizard of Oz - Judy Garland, 1939
Birds fly over the rainbow.
Why then, oh why can't I?
If happy little bluebirds fly
Beyond the rainbow
Why, oh why can't I?
Harold Arlen, E.Y. Harburg

O filme seguinte foi La Danza de la realidad, de meu ocultista favorito - e não somente isso -, Alejandro Jodorowsky. Mesmo entre os tarólogos ele é mal visto, pois, assim como na chata academia e na sociedade civil, há algo que me irrita profundamente ultimamente: o ceticismo e racionalidade pesados demais para a minha cabeça. E aqui volto um pouquinho ao princípio, me costurando à vida do próprio Jodô. Se não quiseres spoilers, vá assistir ao filme, e depois volte. Cinematograficamente, Alejandro Jodorowsky teve um pai extremamente autoritário, de cabelos pretos penteados para trás, e bigodes pretos. Assim como o meu pai. O pai de Jodô tinha devoção por Stalin, assim como eu (na verdade, mais ou menos). Na verdade, é isso mesmo. É que é complicado, e eu acho que tem a ver com os mesmos dramas de Jaime e Alejandro, que foi a poda dos sentimentos de uma criança, que se desenvolveu como pôde, e no nosso caso foi demonstrar uma força hercúlea de arrancar dentes sem anestesia (no meu caso teve muita anestesia e ninguém me obrigou, somente eu mesma, mas quantas pessoas arrancam quatro sisos não nascidos um atrás do outro, numa mesma cirurgia? - Eu sou desse grupo, comente como foi seu caso). A poda de Alejandro começa por seus cachos dourados. Depois, amizades e afeição aos oprimidos - lembrando que seu pai era um comunista, daqueles de cantar A Internacional, mas que chutava os mineiros amputados que o filho coçava as costas e abraçava.

Meu pai não era stalinista. Meu pai é bolsonarista. A grande sacada de Sara, a mãe-personagem lírica e maravilhosa de Alejandro, é compreender - porque se compreende com o coração, e não com a cabeça - o drama do marido árido: tinha Stalin como dios, Ibañez, presidente militar chileno, como passion. Três bigodudos em telas, um oposto do outro, todos iguais. Pegando fogo. Melhor forma simbolista de matar um período da vida: transmutar tacando fogo. Amo. Fogo é espírito, é ação. Atitude. Enfim, Jodô poderia ter sido um Jaiminho - não o do Chaves - se não tivesse esse simbolismo todo dentro de si. A vida dele (a real também) foi muito dura, não importando aqui se mais ou menos dura que outras, porque o foco não é esse. Sara fez o marido entender que se endurecia e perdia toda a ternura ao admirar dois bigodudos barra pesada. E eu entro nisso. Stalin é um fascínio para mim, não só pela beleza (convenhamos que Lenin e Trotsky eram horrorosos, e Josef um galã). Não vou comentar questões políticas porque: foda-se. É um fascínio independente de concordância ou discordância. Meu marxismo real se atém a Marx e Engels, porque com eles não tem erro. Os outros são história.

Mas o que me liga a Jaime e a Jodô é que essa figura de poder é algo que buscamos desesperadamente, porque assim nos foi imposto. Como se isso fosse um ideal de força e hombridade. Esses pais vestiram capas de uma falsa macheza, que é só uma meninice rabugenta. Não houve real amadurecimento, por desespero para amadurecer. Quanto mais buscaram, menos conseguiram, como alguém que corre desesperadamente por um corredor que só cresce. Tenho tentado me soltar desse redemoinho, e o simbolismo tem me salvado. E ver Alejandro Jodorowsky fazendo um filme tão irreal, que se fez absolutamente realista para mim, só provou o quão anti-realidade eu sou.

Não anti a realidade em si, porque senão nem aqui eu estaria. Mas vivo numa balança que tenta se equilibrar sempre entre mundos. Me vejo marginal, por não estar em nenhum círculo, e por evitá-los a todo custo. Mas também estou no meio. Sou centralheaven, no fim das contas. Então, até por questões do espírito, de personalidade, seja lá o que for: não consigo ser extrema de nada por muito tempo. Sou andarilha. Detesto caixas, bolhas, paredes. Como menestrel, como poderia eu viver lá ou cá, se posso viver lá e cá? É sabido por diversos artistas, psicanalistas, espiritualistas, nada menores que os cientistas, que o que vem de dentro é tão necessário quanto a razão. Então, por isso tenho negado essa falsa realidade a que se prendem os acadêmicos, os não acadêmicos, os ignorantes. Ignorantes no sentido de ignorar algo que não vivem, e tecer opiniões precipitadas. Todos nós usamos sabedorias da terra em algum momento da vida. Assim como nos refugiamos na arte para não cometermos suicídio. E a arte é expressão humana do que vem de dentro, e um de dentro que vem de fora, porque temos aqui, finalmente, uma dança da realidade: o que a sociedade nos causa, faz com que respondamos a ela de algum modo particular. E nossa resposta é uma ação que tem como reação o próprio mundo. Um perfeito ouroboros, uma roda da fortuna. E isso é tão Camusiano. O Mito de Sísifo, de Albert Camus, fala sobre esse teatro que é o mundo, dos atores que somos nós, dessa tensão entre nós e ele. Porque buscamos, no mundo, respostas, e recebemos silêncio. Então, criamos nossas respostas, e isso é O Absurdo. A esperança é uma afronta a essa "realidade" que nos é duramente jogada na cabeça. E a minha esperança é circense!
Esse texto está agora naquele momento épico, como uma música que vai se desesperando ali do meio para o fim. São tantas coisas que posso me perder, mas é assim que me encontro. Passei anos de minha vida rejeitando o circo, quando na verdade tudo me leva ao picadeiro. Meu primeiro conto é num circo latinoamericano. O Auto da Compadecida é narrado por um palhaço, originalmente. O que é Chespirito? Os Trapalhões, que assisti com paixão por toda a infância? Monty Python flying circus? Pink Floyd live at Pompeii, num anfiteatro? Um menestrel sem público é o que? O que é uma Helen sem ouvintes, sem leitores? É uma Helen llena de nada.

Me comunico por metáforas, alusões. Me ponho nos personagens. Me achava Inaura, a que se perde em paixões, com ares de Lisbela, a que sonha belos-amores-fera cinematográficos, quando também sou Leléu. Esse viajante de caminhão por cidadezinhas interioranas, se transformando em diversas personas, utilizando diversos disfarces, nomes, máscaras. Se apaixonando e sumindo toda santa vez. Não permanecendo, cortando laços. Não sei dizer até logo. Meus "até logo" são verdadeiros adeus. Porque sei que, quando uma novela acaba, nesse Decamerão que é minha vida, ela realmente acaba. Leléu é o menino sonhador que se perdeu da família em uma noite em que passou um zepelim pela cidade. Absorto, absorvido pelo gigante nos céus, correu por ruas, areia e mar sem olhar para a terra nem para trás, mas olhando para o impossível. E eu sempre fui assim. Mas me prendendo, me perdendo, tentando me encontrar em chãos que nunca foram meus.
Mais do que amar a pessoa amada, eu amo amar. Eu amo o amor. Mais que amar aquilo que se acredita, eu amo acreditar. Mais que gostar das coisas que gosto, eu sou aquilo que gosto. Eu, amadora, transformo-me na coisa amada. Faço dela minha poesia. Acredito no impossível, porque nele é tudo possível. Acredito no infinito. Porque Eu Sou Amor, da cabeça aos pés. Sou absurda, camusiana, porque espero, sou esperançosa. Crio infinitos mundos, realidades, contos, possibilidades em minha cabeça. E ainda tenho tempo para me surpreender com os fatos. Por que me privar, por Deus? A vida é agora! Vive!

1. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica.
2. SHAKESPEARE, William. Hamlet.

19.6.20

Vulcânica

Erez Marom - Vulcão Kilauea, Havai.

Estava aqui agorinha conversando com minha xará de sobrenome, Alessandra Araújo, sobre processos criativos e marketing, por causa de um texto que saiu sobre a Amazon. Foi um fluxo de coisas na verdade, mas eu ando tão brainstormica que nem me atrevo a fazer sentido mais.

Há alguns dias estou alimentando a ideia de publicar. Seja um e-book de ensaios, contos, autobiográfico, seja uma zine digital, um pdf baratinho. Só que não sei onde publicar isso. Na Amazon é fácil, mas a política dessa empresa é tão anti-trabalhadora que, mesmo que eu diga que não me importo com a ética burguesa, eu me importo com a ética do proletariado. Então não sei como fazer.


Publicar grátis é muito fácil, e seria o ideal. Eu amo jogar meus textos por aí como fiapos de dente-de-leão soprados e propagados pelo vento. Me importa muito mais ser lida do que ser famosa, ou ganhar com isso. Mas, acontece que meu trabalho no momento é ser eu. E ser eu tem sido difícil. Mas prefiro a dificuldade de ser eu, ser o meu próprio meio de produção, do que voltar a me prostituir para o capital. Não era ruim trabalhar com o que trabalhei, pelo contrário. Não é isso. Sempre trabalhei com crianças e com educação, mesmo que eu negasse a Profissão: professora dentro de mim. Sou um Locke-Robertson de Antonioni, talvez. Minha angústia, e agora meu desafio, é fazer o que eu quero, o que eu sou e o que eu acredito. Acreditava no que eu fazia, mas não era eu. Eu emprestava a minha ferramenta de trabalho para produções alheias. E hoje tenho que moldar minha ferramenta para produções próprias. É como um artesão medieval trocando o ferro pelo barro. Talvez isso fosse absurdo naquele tempo, já que o ofício era hereditário, tradição, processos. Mas ontem na terapia defini que sou toda medieval. Talvez por ser pré-capitalista.

Michelangelo Antonioni - Professione: reporter, 1975. Jack Nicholson's David Locke/ Robertson
Fugi de tudo. Da minha mulher. Da casa. De um filho adotivo. De um bom emprego. De tudo, exceto alguns maus hábitos.
David Locke
Sobre os processos, também foi conversa minha com Alê e a terapeuta. Esta última me indicou o Ser criativo, de Stephen Nachmanovitch. É meu primeiro livro sobre processos criativos, que achei no scribd em inglês e aproveito para treinar o outro idioma. Porque eu amo e defendo o processo, mas tenho uma dificuldade enorme de não concluir um projeto quando ele demora mais que um dia. Isso diz muito sobre esse blog, inclusive, que tem tantos rascunhos quanto textos publicados. É sempre no calor do momento, porque - parece que - meu temperamento é colérico, e se eu vou esfriando, o magma endurece e torna-se pedra. Coisas de uma mente ansiosa.

Só que eu também sou lenta. E nisso eu entro na literatura. Ontem citei e fui relacionada a vários personagens dúbios da história da literatura. Dorian Gray, Dr. Jekyll & Mr. Hyde, Nina, de Black Swan. Lisbela e Inaura, Bela e Fera, Fragmentado. Na verdade o fragmentado é uma piada minha, porque a terapeuta apenas comentou de a minha arte ser fragmentada - o que explica minhas colagens -, e eu gosto muito de James McAvoy e desses 20 e tantos personagens em um só.

Mr. Night Shyamalan - Glass, 2019. James McAvoy's Kevin, Beast, Et cetera

E, conversando com Alessandra, chegamos ao marketing (por causa da publicação que eu quero vender). Não sei fazer isso. Comentei com ela que não sei ser "Oi, tudo bem? Texto aqui. E aí, como acontece com você? Escreve aí nos comentários!". Não sei ser "carinhosa" desse jeito. Eu sou carinhosa, mas parece que deve haver o mínimo de envolvimento pessoal. Socialmente eu sou muito seca e direta, ou pelo menos me enxergo assim. Minhas opiniões são diretas. Minha amiga Marina comentou em stories que sempre assisto a tudo quieta e que só abro a boca para coisas extremamente pertinentes. Foi um baita elogio, e eu me vi como aqueles bichos que moram em cavernas e só saem para dar o bote, como a Lasiodora parahybana (não pesquise se você é aracnofóbica/o), ou aqueles eremitas que moram distantes do mundo "civilizado". Nunca fui dada a grupos, e toda vez que tentei entrar em um, sentia que estava me traindo. E comentei com Alessandra que ser "carinhosa" assim na internet, por mais que seja uma estratégia de marketing, é ser falsa comigo mesma. Por isso eu tenho tanto essa facilidade de falar mal de qualquer poder simbólico da burguesia, isso me cheira a carne podre e eu sou um bicho que gosta de comer carne fresca. Mas nada contra quem é assim (na verdade tudo contra, pra que mentir?). O capitalismo exige.

Alessandra falou que talvez no mundo da escrita essa liberdade de não ser carinhosa é mais fácil de existir (na verdade eu entendi isso do que ela comentou). E me veio na cabeça feito um tijolo - porque não poderia ser feito pluma - Dostoiévski. Me lembro de ler Notas do subsolo (nunca sei se é notas ou memórias, acho que é Memórias do subsolo) como uma criança come um brigadeiro em festas de aniversário. Ou como eu criança comia balas de coco em festas de aniversário. É um livro curto mas é muito pesado, porque tem muito ódio e, que engraçado, é um homem encavernado no seu quartinho no subsolo da sociedade, provocando os cidadãos russos e, ao mesmo tempo, provocando a si mesmo! Uma associação ao vivaço nesse blog. Sincronicidade em tempo real. Eu me via aquele homem do subsolo, querendo arranjar uma briga com o guarda no bar, querendo não desviar seu caminho na praça, para o soldado ter que desviar e, se o soldado não desviasse, que eles trombassem e se engalfinhassem numa briga de morte, então. Isso é assustadoramente eu.

E, de Dostoievski, fui lembrando de Clarice, de Graciliano, de Guimarães. Até mesmo de Orwell. E agora Marx, Engels. Se você for ler todos esses autores, e até outros, como Kafka, é uma coisa tão horrível e arranhada, mas é horrível de lindo. É arranhado feito aguardente e violoncelo. Ou rabeca, um instrumento arcaico (medieval) da música feita no nordeste. E são os autores que eu mais me identifiquei desde sempre. Clarice é a caçula deles todos. Graciliano eu amei em Vidas secas, porque para mim Fabiano é meu avô e os meninos meu pai e tios. Baleia talvez fosse eu entendendo as secas que não vivi. De Guimarães eu li pouco, e acho difícil, mas viver não é mesmo um rasgar-se e remendar-se? Eu costuro, rasgo, colo, rabisco. Amo as ruínas, tendo trabalhado com patrimônio. Orwell é a minha vida acadêmica resumida, digo que amo Stalin mas adoro escrever sobre antitotalitarismos por aí. Marx e Engels tinham a ponta do bico-de-pena afiada demais, parece que escreviam com sangue e com sarcasmo. A coisa mais linda desse mundo são os prefácios à edição de mil oitocentos e qualquer coisa. É uma dedicação à contemporaneidade que me deixa besta. Poucos acadêmicos são assim. Conheço com a palma de uma mão, apenas, acadêmicos assim no Brasil. Mas eu sou difícil de agradar. Eu acho. E Kafka... O Processo, né? Sem querer dar spoiler de uma obra de quase cem anos, mas O Processo é um processo inacabado. Franz morreu antes de terminar. E só essa historieta já faz o livro valer toda a pena do mundo. O Processo é muito mais do que Dilma passou há poucos anos, por mais que valha essa comparação. O Processo é uma coisa que diz mais ainda de mim, e Orson Welles perfeitamente filmografou como eu mesma imaginava. Isso foi chocante demais para mim. Assim como o livro interminado, e a história em sua gênese inacabada, as edificações do filme também estão em processo de construção. Essa obra é um labirinto, assim como eu.

Orson Welles - The Trial, 1962. Anthony Perkins's Josef K

Estou dizendo tudo isso para me encontrar, mesmo. Porque estou perdidinha. Pareço tanto G. H. que não consigo ler esse livro porque cada linha me fere o peito, parece um soco nas costelas que nunca tinha levado antes. Então vou voltar aos instrumentos para não sofrer demais. Estava falando sobre o violoncelo ardido. Stephen Nachmanovitch, o autor do livro que comentei ali em cima, é violinista e suas músicas são rasgadas assim também. Eu gosto de Bach, de Liszt, de Prokofiev, Tchaikovsky, Vivaldi, Beethoven, todos pelo mesmo motivo. Ouço mais Mozart, mas por motivo um pouco diferente, então não conta aqui. Os seis primeiros têm algo de desesperador em alguns momentos e movimentos, e eu volto àquela cena de Gary Oldman: "gosto dos momentos de calma anteriores à tempestade, isso me lembra Beethoven". Ah, tem Ravel também. Colocando algumas músicas específicas desses artistas em perspectiva, é como, novamente, o vulcão em erupção. Você tem a calmaria, o crescendo, o ápice, a explosão, o escorrer da lava que, silenciosa e plácida, arrasa os arredores enrijecendo e se tornando obsidiana: um negro vidro vulcânico lindíssimo. Talvez esse seja meu processo. Na verdade é assim que eu sou também, mas a impressão é que sou tudo isso ao mesmo tempo. Explosão de calmaria, magma quente e macio, e um belo vidro bonito e duro que serve de espelho e joia.

Luc Besson - Léon: the professional, 1994. Gary Oldman's Stansfield

Não sei se vou sobreviver financeiramente nesse mundo capitalista de métodos de conquista de potenciais clientes, sempre fugi de administração, contabilidade, marketing e empreendedorismo como o diabo foge da cruz, e estou tendo que lidar com tudo isso agora, ao mesmo tempo, enquanto crio dolorosamente. Mas eu também sou teimosa. Alguns de vocês comentaram sobre eu escrever e isso me fez ver como minha escrita é importante. Não sei se há imodéstia em alguma fala aqui, mas sempre fui tão modesta que isso encheu meu saco, então nem me darei o trabalho de ser. Já é muito difícil, e eu não sei por quê, acreditar que as pessoas gostam do que eu faço, não porque eu não goste do que faço, mas porque sinto que poderia ter feito mais, ou melhor. Sei lá, é uma relação complicada. E por tanta modéstia e perfeccionismo, acumulei anos de aprendizados não postos em prática, e sinto que esse vulcão aqui está ativo. E essa lava quer arrasar Pompeias e Herculanos, destruindo civilizações, mas criando belíssimas ruínas para a posteridade. Engraçado, né? Criar ruínas. Isso é lindo demais.

Fiz uma playlist a partir das músicas que pensei para esse post, e achei a cara de Hefesto, o Vulcano romano, deus da forja, metalurgia, vulcões, ferreiros, artesãos e escultores, assim como eu. Vulcão é uma palavra que veio dele, então nada mais justo. A capa é Vulcan forging the Thunderbolts of Jupiter, de Rubens (1636-38), e está no meu museu favorito que jamais visitei, que é o do Prado. Playlists são também colagens. Desmembro discos, tal qual Saturno (de Goya, que também tem playlist), e crio mundos. Forjo estruturas.


Vou deixar vocês aqui, por mais que isso não tenha sido nem metade do que eu queria dizer. Peço dicas de como começar ganhar dinheiro com arte, escrita, não precisa ser muito. Ko-fi? Patreon? Apoia-se? Algo mais simples? Ou, ainda, dicas de leitura sobre criatividade e criação. Processos. Gêneros literários. Já agradeço de antemão!

30.4.20

Lamento do exílio

Essa noite sonhei com meus antigos alunos no museu. Não eram as mesmas crianças da realidade, e a turma tinha mais de 20, de todo tipo. Estava animada. Em determinado momento da aula - estávamos todos deitados e cobertos, como que num cinema improvisado -, dois começaram a cantar Assum preto e eu os acompanhei. Eles, pequenos, sabiam a letra melhor do que eu. E eu lembro que pulavam uma estrofe que era a que eu sabia, e eu tentava cantar ela todinha, sozinha.

Costumo sonhar com música. Geralmente, quando isso acontece, é minha intuição soprando nos meus ouvidos.

Assum preto é a música mais triste que eu já ouvi.
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Antes de me deitar, dei uma desabafada incomum no instagram. Geralmente eu solto todo o meu veneno e meu ódio contra a geração e a classe média, porque hipocrisia é um troço que me tira do sério. Quase achei que era projeção, mas nem tudo é isso né? Eu só odeio mentira e falsidade mesmo. Mas enfim. Ontem o desabafo era um lamento.

Meu mapa astral foi lido no início de março, antes da quarentena se estabelecer. Uma coisa que me fez querer chorar, e que só deu mais corpo a essa sensação inominável que eu sinto, foi a astróloga comentar que meu Júpiter está em exílio. Na astrologia, isso significa que o planeta está numa casa diametralmente oposta àquela que rege. Ou seja, Júpiter, que costuma reger Sagitário e Peixes, está oposto a Peixes, em Virgem. Virgem é regido por Mercúrio. Imaginemos assim: o maior planeta do sistema solar, na casa do menor planeta do sistema solar. Como o grande cabe no pequeno?
O maior e o menor planeta do sistema solar - excetuando Plutão
Quando comentei da minha dificuldade em ter nascido e morar em São Paulo, e minha necessidade do Nordeste, aí que ela enfatizou o Júpiter em Exílio.
Você pensa que, quando se aposentar, poderá fazer uma casinha na praia, mas pensa nisso, porque falta muito ainda para esse momento acontecer. Nada voltará a ser igual. E não porque os outros mudaram, mas porque você se transformou em outro. E até é possível que não se encaixe nem no mundo de que partiu, nem no mundo em que foi parar. No final aprenderás a viver na fronteira dos dois mundos, um lugar que, embora possa ser de divisão, também é de reunião e ponto de encontro. Um dia de julgarás a si mesmo afortunando pelo fato de desfrutar da referida fronteira, e descobrirás que és mais completo, mais híbrido e mais imenso que qualquer outra pessoa.*

Não existe nada que me faça parar de dizer como odeio São Paulo. É algo maior do que eu. Meu lamento de ontem era justamente isso. Vi o story de um amigo da minha irmã na plataforma da Estação Carrão e, por um breve instante, eu quis fugir do planeta. Disse que não era nem medo de sair de casa quando acabar a quarentena, era pânico mesmo. De ter que passar por cada quilômetro, por cada estação, por cada vagão, por cada pessoa que habita essa cidade. Somado a isso, tem a questão de você sair de um período de aprisionamento para um que é o seu oposto. E mais: o meu ódio à minha geração. Eu definitivamente detesto o tal do millennial. É claro que sou, e tenho amigos que são. Mas essa adolescência mal resolvida de nós todos é algo que me deixa doente. Explicando para a psicóloga esse sentimento, jamais esqueço as palavras dela, que foram algo como: "é que eles são antítese do que você defende, né Helen?". O que eu defendo? A memória. Não chego a ser uma velha conservadora, mas também não sou dessa turma. Sou, novamente, exilada. Tenho uma necessidade doida de materialização das coisas e perfeccionismo também. Odeio tantas coisas que nem vou entrar no mérito.
Pra que serve o Nordeste?
Pra exportar nordestino
E qual é o seu destino?
é de cabra da peste
De Norte, Sul, Leste, Oeste
Na indústria ou construção
Mourão Voltado. Vital Farias
Mas tem uma coisa que detesto e posso comentar, porque é o que me fere mais: São Paulo, não só por ser a capital econômica do país, é a personificação do capital. Como Metropolis, como qualquer distopia, como Brazil, como o capítulo de Nova York do livro Tudo que é sólido desmancha no ar. Em janeiro assisti a O Homem que virou suco como quem se alimenta depois de quase desmaiar de fome. Esse filme é importante pra mim em diversos graus: cordel, Paraíba, São Paulo (grande bosta!), arte, violência, construção, casa "de família", burocracia, paulistas, nordestinos conservadores. E Zé Dumont, que desde o dia que vi o filme, me pergunto se já não topou com algum parente meu em Bananeiras, sua cidade natal e cidade vizinha àquela que quase que foi meu berço: Solânea.
Talvez uma referência a King Kong, O Homem que virou suco é o meu expressionismo nordestino
Eu tenho um misto de pena e raiva de quem ama ou sonha com São Paulo. Porque o grande defeito da minha vida é o defeito de fabricação. Eu fui forçada na nascer aqui, exilada. Porque meu pai sofreu na Paraíba e puxou minha mãe pra cá, grávida de cinco meses. Até hoje nem sei se ela queria (ela agora mesmo disse que queria, perguntei). E ele só veio por causa daquela velha história que se retroalimenta: São Paulo é a terra da "oportunidade". Porque você mina as oportunidades locais, concentrando tudo nesta grande máquina, e tem que, humilhado, se dizer muito agradecido por essa merda toda. Se tem uma coisa que eu não faço é agradecer o tempo todo como se eu fosse uma coitada. Eu não tenho que agradecer São Paulo por nada. São Paulo não faz mais que a obrigação e, convenhamos, nem faz sua obrigação. A humilhação é grande. E as pessoas são apaixonadas por essa grande opressora. Não tenho uma visão com lentes cor-de-rosa disso aqui não.
Às vezes sentia voltar
Como uma lembrança forte
Toda a vida passada
A infância no Norte
As amizades perdidas
Em seu caminho de sorte

Nesses ricos instantes
Pensava recuperar
Seu modo antigo de ser
Paraibano de fé
Pensava logo rever
Seus pais, tios, amigos
E pelos campos correr*
O que achei curioso nisso tudo, que sempre foi latente em mim, é que dessa vez eu vi numa perspectiva de eu dentro da coisa. Sempre tive a mania de ler o mundo como se eu não fosse dele - porque eu não me sinto dele -, e tenho passado a me colocar dentro da História. Historiador tem disso de contar a história dos outros e esquecer da sua (se for humilde né, porque se é esses acadêmicos que a gente topa a cada esquina, misericórdia). Eu contava a história da migração como se fosse dos meus pais. Da opressão ao trabalhador como se fosse aos meus pais. Mas eu não sou gente não? Não migrei e reemigrei? Não trabalho para o capital? A gente, quando faz uma faculdade porque lutou pra isso, engole uma parte e se acha privilegiado. Claro que tive mais condições que muita gente do meu bairro e da minha família, mas continuo sendo da minha família e morando no meu bairro. Sem ter vergonha dele, sem querer sair dele, sem dar uma de fresco como muito millennial do meu bairro e de outros bairros fazem. Ou gente que usa sua pobreza para ilustrar seu hipsterismo. Ou gente que usa o pobre pra dizer como é legal, como é galera, como nem é preconceituoso. Eu tô ligada, viu, nessas malditas máscaras sociais. E eu vejo isso borbulhando destampando os bueiros de São Paulo.
O final dessa história
É pra ouvir e entender
Depois disso vou embora
Tentando compreender
O que há de errado na vida
E faz a gente sofrer

Severino foi jogado
Numa rede e retorcido
Morreu ali esmagado
E seu sangue recolhido
Em garrafas de vidro fino
Virou suco de nordestino
E assim foi consumido.*

Tudo o que citei


* ANDRADE, João Batista de. O Homem que virou suco (Folheto de cordel). 1974. p.39-54.
ANDRADE, João Batista de. O Homem que virou suco (Filme). 1981
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar.
FARIAS, Vital. Mourão voltado.
GILLIAM, Terry. Brazil. 1985
GONZAGA, L; TEIXEIRA, H. Assum preto.
LANG, Fritz. Metropolis. 1927.
LEE, Rita. Tão.
** SOUZA, Thiago Romeu de. Lugar de origem, lugar de retorno: a construção dos territórios dos migrantes na Paraíba e São Paulo. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2015.
ZÉ, Tom. Com defeito de fabricação / Fabrication defect. 1998.

16.4.20

Autostalk é uma delícia

Às vezes. Hahahaha. Mas recomendo.
Não consigo não me mijar de rir com essa desgraça kkkk
Essa semana eu precisei lembrar a origem de frases que martelam em minha cabeça e recorri ao whatsapp. Descobri que era de minha autoria, na verdade parte de uma intuição e tudo mais. Mando mensagens para mim mesma há anos, me adicionei no whatsapp e me tenho fixada como primeira conversa. Aquilo serve como um bloco de notas. O Telegram é mais sofisticado e tem uma funcionalidade para isso há muito mais tempo. Mas o fato é que nessas horas, a gente fuça como a gente era há meses, anos atrás.
You know it's true: all the things come back to you
Eu mudei bastante. Mas ao mesmo tempo não mudei nada. Está lá no meu whatsapp, e também no telegram: memes, fotos e prints que viraram figurinhas, citações, mensagens alheias que salvei para não esquecer (e esqueci quem me mandou, ou pra què), frases que me vieram à cabeça em plena madrugada.
A previsibilidade humana me deixa no limiar entre o riso e o grito.
Poderia ser de hoje. Mas é de 15 de maio de 2017. Os rastros que deixamos de nós mesmos no meio do caminho são impressionantes. Me sinto muito o Marty McFly em De Volta para o futuro, só que, em vez de eu ser o Marty do futuro dando dicas aos ancestrais em 1955, ou em 1885, eu sou o Marty do passado, visitando a atualidade dele. Quase como o Marty do segundo filme, que viaja para 2015, mas diferente. É meio esquisito, e engraçadíssimo. Parece Interstelar também. Ou Mr. Nobody - um filme que eu nem me lembro mais como é. OU DARK!!! Definitivamente. É engraçado o timing em que a Helen do passado reaparece para me aconselhar agora, no presente. O que falei de maneira banal ou desleixada, hoje me arrebata com uma força que faz com que tudo se conecte.
Tudo está conectado - Dark (dedicado à minha amiga Vivi)
Estou cada dia mais certa que o tempo é cíclico e espiral, e não uma linha reta. Já estudava isso na História. Giambattista Vico falava de Corsi e Ricorsi no século XVII. Outros povos de outras culturas e outras ciências também. Não à toa, temos as estações do ano, os cliclos lunares e solares, a Astrologia, o Tarot com sua jornada do louco, o Ouroboros e a Lemniscata, o Mito de Sísifo e a Roda da Fortuna.
Este   curso  e  recurso  da  história  ou  das  idades  dos  povos  seria diferente de uma idéia de retorno, pois institui uma  concepção  de  tempo  helicoidal,  espiral  e  não  circular.
Lenzi e Vicentini
Mamãe diria, citando The Fevers: "tudo que sobe, desce, tudo que vem tem volta". Já Marx, atualizando Hegel, diria
Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. 
É isso. Tem todas as questões da psicologia, que basicamente existem para batermos a testa sempre na mesma parede, revivendo, em situações diferentes, os mesmos padrões que alimentamos, até nos darmos conta dessa "falha" na matrix e, primeiro, analisarmos essa sombra, compreendendo-a, abraçando-a, encarando-a com coragem, e depois, mudarmos de caminho podendo seguir em frente desbravando novas trilhas.
Você na terapia explicando porque se fodeu de novo e não quis viajar no próprio inconsciente
Percebam que não falei "mudarmos nosso destino", pois acredito que isso não existe. O destino é um só. Cada um tem o seu, todos se cruzam, e todos vão dar no mesmo lugar, com cada ser cumprindo sua sentença e encontrando-se com o último mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre. Suassuna já deu a letra em 1955.
Guel Arraes Dir. Selton Mello como Chicó: O Auto da Compadecida, 1999.
Ah, a frase que eu buscava no whatsapp e me ajudou a perceber as constâncias da vida foi esta
Tece o teu destino.
Diz aí se não teci uma bela teia.
Gary Winick. Charlotte's web, 2006

Tudo o que citei:


AEROSMITH. Dream on.
ARRAES, G. O Auto da Compadecida.*
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo.*
DERMAEL, J. V. Mr. Nobody.
FEVERS, The. Elas por elas.
LENZI, E. B.; VICENTINI, M. R. Vico e a História como ciência.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.
NOLAN, C. Interstellar.
ODAR, B. b.; FRIESE, J. Dark.
SUASSUNA, Ariano. O Auto da compadecida.*
WACHOWSKIs, L. Matrix I, II, III.
WINICK, G. Charlotte's web.
ZEMECKIS, R. De volta para o futuro I, II, III.

* 17042020 18:11 Devido às questões da Amazon com seus trabalhadores, tema bem avisado pela Alessandra, minha xará de sobrenome e várias outras questões, removi o link de Associada e vou caçar outra maneira de ganhar uns trocados online. Se tiverem ideias de como fazer sem prejudicar trabalhadores de todo o mundo, por favor, indiquem! À direção 👩🏻‍🔧

4.12.19

Conta comigo

Stand by me. Baseado em O Corpo de Stephen King. Direção de Rob Reiner, 1986.
As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem — as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas te olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou enquanto as estava contando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda. As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar.
Tem gente que chama Stephen King de "Rei do terror". Nem discuto essa nomenclatura. Mas eu o enxergo como um mestre do drama psicológico, digamos assim. Pode ser terror, mas não o terror que vejo pintado por aí.

Não li muitos livros dele. Li O Iluminado - que me deu muito medo -, A Coisa, Carrie, comecei Cemitério maldito umas três vezes, e Quatro estações, que penso ter sido meu favorito. Fora os filmes, que nem me lembro direito quais além de O Iluminado, A Janela secreta, Carrie, Christine, A Coisa (antigo) e também meu favorito Conta comigo.

E é sobre Conta comigo que quero conversar hoje.

Esse filme sempre me doeu a alma, porque é uma sessão da tarde, é infantil, e ao mesmo tempo é um desgraçamento da cabeça. Lida com memória, sonhos, aventuras, perdas e ganhos, morte, e o tempo que passa.

Primeiro, vou deixar claro aqui uma coisa: esse filme tem nada mais, nada menos, que River Phoenix. Irmão do Joaquin, ele morreu cedo, de overdose em frente a uma boate que na época era de Johnny Depp: The Viper Room. Está presente no disco Niandra Lades and Usually Just a T-Shirt de John Frusciante, que já tocou na mesma boate. Referências são sempre necessárias.
River Phoenix
A cena que mais me lembro desse filme, e talvez seja a mais icônica mesmo, é a do menino gordo vomitando torta de amora, fazendo com que todos os presentes vomitassem sem parar. Geralmente a gente ri e diz "que nojo!", mas a grande questão dessa cena é o bullying, ou, para termos atuais específicos, gordofobia. Toda uma cidade, não somente crianças, mas pais e professores, humilhando um rapaz que planeja sua nojenta, performática e magistral vingança.

Minha cena favorita talvez seja a dos sanguessugas. Ou todas. A motivação do filme é eles descobrem que há um corpo na floresta - o conto chama-se Outono da inocência: O Corpo - e querem ir até ali, confrontar-se com a morte. Infantil? Pode ser. Infantes são pessoas como os adultos, temos que parar de privar crianças de temas necessários para compreensão de si e do mundo, e estamos fazendo justamente o contrário, alienando-os, privando-os de frustração, quando eles, na verdade são mentes mais frescas e capazes de compreender as mais difíceis filosofias.

E eu só serei jovem uma vez!
Enfim, a aventura do grupo de amigos, cada um com sua característica, é ir juntos encontrar O Corpo e contemplá-lo. Quando chegam ao destino, O Corpo é observado quase que como em um ritual. Há reflexão, há contemplação. E há o olhar para trás e ver que a história, por mais que tenha sido motivada pelo objeto inerte a ser encontrado futuramente, a história esteve na caminhada. Nos perigos que eles correram, nas brigas que causaram, nos sonhos que tiveram, nas histórias que contaram. E isso trouxe a eles mais um pouquinho de maturidade, de compreensão da vida, de si mesmos e a amizade que alimentaram.

Isso é muito dramático. Porque viver é dramatizar. A vida é, como dizem, uma peça de teatro encenada ao vivo, intuitivamente, sem ensaios.

O que mais dói, na verdade, é o futuro, que depois é passado. O desfecho da história, onde os amigos vão morrendo um a um, e o mais pacificador dos amigos é o que morre numa briga de bar, tentando apaziguar querelas alheias. Isso é tão paradoxal, contraditório, não-natural, que é lindo, é belo. E a beleza dói. Um dia eu chorei até me engasgar, e sinto que aquela conteplação que rebentou o choro aconteceu porque foi a primeira vez que enxerguei o belo em minha vida.
“Não há tomada de consciência sem dor. As pessoas farão qualquer coisa, não importa o quão absurda, para evitar enfrentar a própria alma. Não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas vivendo conscientemente a escuridão”
[atribuida a] Carl G. Jung
Talvez o terror esteja posto não nos monstros alegóricos das histórias, mas no fato de o espectador ter que encarar as sombras arquetípicas da sociedade como um todo representadas nesses mesmos monstros. Que somos nós.
[...] Dizíamos “oi” a distância. Era tudo. Isso acontece. Os amigos entram e saem da nossa vida como serventes de restaurante, já reparou? Mas, quando penso naquele sonho, os corpos embaixo d’água puxando insistentemente minhas pernas, parece certo que tenha sido assim. Algumas pessoas afundam, é isso. Não é justo, mas acontece. Algumas pessoas afundam. [...] Eu? Atualmente sou escritor, como disse. Muitos críticos acham que escrevo bobagens. Quase sempre acho que têm razão... [...]. Minha história parece tanto um conto de fadas que é absurda. [...] A ponte mais acima foi demolida, mas o rio ainda existe. E eu também.
When the night has come 
And the land is dark 
And the moon 
Is the only light we'll see 

No, I won't be afraid 
Oh, I won't be afraid 
Just as long as you stand 
Stand by me
FIM

KING, Stephen. Outono da inocência: o corpo. In. Quatro estações.

17.11.18

Não é coisa de momento

Eu sempre quis ser aquelas mocinhas sensíveis minimalistas e naturalistas que eu sigo em blogs singelos por aí, que ouvem Loreena McKennitt e apreciam Beatrix Potter. Até porque eu aprecio tudo isso, como com os olhos. Eu queria ser Lisbela. E até que sou. Também devoro os filmes apaixonados e as feições dos personagens principais, engulo suas histórias até revestir-me delas como se eu mesma fosse daquele mundo.
Beatrix Potter - The Story of Miss Poppet, 1906
Mas eu também sou Inaura. Desmantelada, esbaforida, desesperada, angustiada. Apaixonada. Também sou rancorosa, sinto inveja de Lisbela e de Leléu, quero matar meu Frederico Evandro e seguir sozinha pelo mundo com uma bala marcada com uma cruz rezando pelas almas que encomendo a Deus.

Estou participando de encontros femininos que discutem a imagem da mulher através da história. Isso dialoga com  minha primeira disciplina da pós graduação, inclusive. A mulher, pelo patriarcado, foi separada em pelo menos duas: Eva e Lilith, Maria e Madalena. Ou Eva e Maria, genericamente. A pecadora e a mãe. Assim é no filme de Guel Arraes, e em tantas outras histórias teatrais, ou mesmo novelas fascistas da Guerra Civil Espanhola: a mocinha, correta, pura, cândida, em tons pasteis e timidez. A vilã, ou anti-heroína, carnuda, em tons de sangue, segura de si e gostosa.

Eva e a Serpente (em algumas histórias a serpente é Lilith)
Sempre me senti muito mais Inaura. Por mais que socialmente possa até ser vista como Lisbela. E sempre quis ser Lisbela, mas quando estou perto disso me sinto animal preso e com raiva. Como um gato, que deita de barriga para cima para receber um afago e ronrona... Até lhe tocarem num ponto em que não gosta e meter patadas e mordidas.

Sempre quis ser dona de mim. Não aceito conselhos, a menos que eu os peça e que sejam-me úteis para eu aprender sozinha o que quero fazer. Detesto depender dos outros porque sei que sou autoritária e quero as coisas já, ou assim, assim e assado. Para não haver desavenças - e eu sei que estaria errada -, já faço eu mesma porque assim se der xabu já sei que a responsável sou eu. E se tiver pressa, será no meu ritmo. E se tiver gosto, será de meu agrado.

Então assim eu decidi o que queria ser, decidi que não queria dinheiro nem pensão, por mais que merecesse e fosse legalmente justo. Porque eu sei que quem ajuda tem o mau costume de cobrar. E eu não aceito ajuda que me seja cobrança, que me prenda, que me limite.

Tenho vivido limitada, enjaulada, humilhada, com a desculpa ou motivação de que estou também aproveitando desses contratos completamente desiguais. Fui enraizando essas desculpas até não perceber os vários tipos de exploração que venho recebendo, em todos os campos da vida. Conscientizar-se disso é doloroso, porém um acordar. E esse acordar é violento. É uma tigresa enjaulada batendo nas grades, balançando a jaula prestes a cair. Porque quem explora, diante de seu conforto que o poder carrega, não percebe que as amarras não são eternas, não são nem fortes.

Basilica di Giunio Basso, séc. IV d.C.
Mas como um animal preso, o mundo lá fora, tão esquecido e desacostumado ainda é hostil. Então vê-se o cadeado enferrujado, o trinco aberto, e a pata ainda não empurra a portinhola para sair. Vai saber se há mais outra gaiola, e quão mais forte e resistente ela será, quão mais implacável?
Quando vi aquele passarinho na gaiola… Pensei que minha vida inteira, se eu ficasse, ia ser assim, vida de triste, de quem desejou, de quem quis de corpo e alma e, mesmo assim, não fez.
Osman Lins - Lisbela e o Prisioneiro
Eu sempre fui uma pessoa desmantelada, desorganizada. Algumas pessoas me chamam de organizada, mas acho que isso fica mais em pensamento do que em questões materiais. Eu sei fazer tantas coisas, mas não enxergo a mim mesma e minha força, então não termino nada. São livros, bordados, cadernos começados, nunca terminados. Jogados pelo chão. Assim como as vontades, que são tantas.

Queria ser, às vezes, Lisbela. Que também é forte e destemida, quando decide que é aquele quem ama, que naquele momento não, que compreende a sensibilidade do olhar do médico-monstro e, portanto, saberia cuidar bem daquilo que começa, terminando e aperfeiçoando tudo o que sabe com muito amor e esperança. Mas a paixão desenfreada de minha Inaura só me faz gritar, desafiar, riscar fósforo* e sair desembestada pelo mundo, procurando qualquer coisa que nem sei o que é, talvez a liberdade.

Na Paraíba chamamos isso de riscar fósforo
© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo