24.7.20

Realidade fantástica

Alejandro Jodorowsky's La Danza de la realidad, 2013

“Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico.”
Tzvetan Todorov [1]
Estou aprendendo a lidar com minha melancolia; quando conversamos conosco, é mais fácil evitar o tropeço. Tenho me dedicado ao oráculo, não como inocência, ignorância ou qualquer entendimento pejorativo que encontramos por aí, a torto e a direito. Comentários, muitas vezes, eles mesmos ignorantes. Oráculo para mim é literatura, terapia, alimento para a alma e para o espírito. Também predição, mas uma predição no sentido de observar bem os passos que são dados, porque há previsões disso e aquilo acontecer justamente por conta dos padrões de inconsciente coletivo que se apresentam e gritam, principalmente quando não queremos ouvir. Previsão meteorológica também não é 100%, mas nos faz ponderar se colocamos o guarda-chuva na bolsa, se pegamos um casaco, correto? E quantas vezes não nos deparamos com o sol escaldante numa tarde de inverno? Oráculo é para mim, portanto, a própria lamparina do eremita que ilumina apenas o pedaço de chão que nos cabe a pisada seguinte. E isso não é fatal, assim como a ciência também não o é. Entre o céu e a terra não há mesmo mais coisas do que pode suportar a nossa vã e vil filosofia?

Grigori Kozintsev, Iosif Shapiro's Hamlet (Gamlet), 1964
Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
Do que sonha a tua filosofia. 
Shakespeare [2]
Sempre fui uma menina onírica. Sonhadora. Passei minha infância brincando com espelhos, aos dois anos eu já respondia o palhaço no picadeiro de Solânea. Acreditava - e acredito - nas histórias folclóricas do meu pai. Assim como amava, era apaixonada por um livro de folclore brasileiro que ganhei da escola. Hoje em dia, acho que esse tema nem é abordado em sala de aula. Entendo a discussão sobre o assunto, mas não se apaga história: se conta e reconta, de diversos pontos de vista. Enfim.

Amante da mitologia, primeiro egípcia e depois grega - e hoje tenho vivido o contrário -, quando tinha raras oportunidades de ir à biblioteca da escola, era O Guia dos curiosos que eu ia buscar. Ou "Os melhores contos da mitologia" tal. Enxergava a matemática voando no universo: números voando no céu feito estrelas. 

Voltando ao lirismo. Assisti a um grupo de filmes em sequência esse mês que me fizeram chegar a um ponto da minha vida que eu nem tenho palavras para dizer. Mas eu chorei de amor, puro, desinteressado. E em todas as vezes era amor por mim. Não tenho autoestima baixa, e se tenho, nego. Mas não creio que tenha. Tenho, na verdade, alguma trava que me impede de desabrochar como deveria. E esses filmes me ajudaram um pouquinho.

Nunca havia assistido aO Mágico de Oz. Já li: lembro de ter o livro em mãos na sala de espera da minha dentista de infância, há uns sete anos. Depois doei o livro, adaptado, numa feira de troca na biblioteca da Etec, onde consegui um catálogo de Edvard Munch. Mas nunca havia sido uma paixão, ou uma vontade. Isso que O Mágico de Oz é a maior personificação do Pink Floyd nos cinemas para qualquer um, por mais que não tenha exatamente a ver, apenas suposições de fãs. Até hoje não assisti o filme sincronizado com The Dark side of the moon, mas consegui assisti-lo normalmente essa semana. Eu amei. Muito. Ri demais com aquele leão medroso, que me fez sonhar que eu fugia de leões, medrosa. Acordei gargalhando involuntariamente no dia seguinte, e rio só de pensar. Cada personagem, cada ator daquele filme... sei lá, é tão bem feito que nem tenho o que comentar. Uma obra de 81 anos extremamente melhor à enésima potência que qualquer filme caríssimo computadorizado dos dias atuais. Para mim, a coisinha mais linda é Judy Garland chorando feito menina. Minha psicóloga acha curioso o peso que eu dou às lágrimas, principalmente infantis. Acho poético demais.

Victor Fleming's Wizard of Oz - Judy Garland, 1939
Birds fly over the rainbow.
Why then, oh why can't I?
If happy little bluebirds fly
Beyond the rainbow
Why, oh why can't I?
Harold Arlen, E.Y. Harburg

O filme seguinte foi La Danza de la realidad, de meu ocultista favorito - e não somente isso -, Alejandro Jodorowsky. Mesmo entre os tarólogos ele é mal visto, pois, assim como na chata academia e na sociedade civil, há algo que me irrita profundamente ultimamente: o ceticismo e racionalidade pesados demais para a minha cabeça. E aqui volto um pouquinho ao princípio, me costurando à vida do próprio Jodô. Se não quiseres spoilers, vá assistir ao filme, e depois volte. Cinematograficamente, Alejandro Jodorowsky teve um pai extremamente autoritário, de cabelos pretos penteados para trás, e bigodes pretos. Assim como o meu pai. O pai de Jodô tinha devoção por Stalin, assim como eu (na verdade, mais ou menos). Na verdade, é isso mesmo. É que é complicado, e eu acho que tem a ver com os mesmos dramas de Jaime e Alejandro, que foi a poda dos sentimentos de uma criança, que se desenvolveu como pôde, e no nosso caso foi demonstrar uma força hercúlea de arrancar dentes sem anestesia (no meu caso teve muita anestesia e ninguém me obrigou, somente eu mesma, mas quantas pessoas arrancam quatro sisos não nascidos um atrás do outro, numa mesma cirurgia? - Eu sou desse grupo, comente como foi seu caso). A poda de Alejandro começa por seus cachos dourados. Depois, amizades e afeição aos oprimidos - lembrando que seu pai era um comunista, daqueles de cantar A Internacional, mas que chutava os mineiros amputados que o filho coçava as costas e abraçava.

Meu pai não era stalinista. Meu pai é bolsonarista. A grande sacada de Sara, a mãe-personagem lírica e maravilhosa de Alejandro, é compreender - porque se compreende com o coração, e não com a cabeça - o drama do marido árido: tinha Stalin como dios, Ibañez, presidente militar chileno, como passion. Três bigodudos em telas, um oposto do outro, todos iguais. Pegando fogo. Melhor forma simbolista de matar um período da vida: transmutar tacando fogo. Amo. Fogo é espírito, é ação. Atitude. Enfim, Jodô poderia ter sido um Jaiminho - não o do Chaves - se não tivesse esse simbolismo todo dentro de si. A vida dele (a real também) foi muito dura, não importando aqui se mais ou menos dura que outras, porque o foco não é esse. Sara fez o marido entender que se endurecia e perdia toda a ternura ao admirar dois bigodudos barra pesada. E eu entro nisso. Stalin é um fascínio para mim, não só pela beleza (convenhamos que Lenin e Trotsky eram horrorosos, e Josef um galã). Não vou comentar questões políticas porque: foda-se. É um fascínio independente de concordância ou discordância. Meu marxismo real se atém a Marx e Engels, porque com eles não tem erro. Os outros são história.

Mas o que me liga a Jaime e a Jodô é que essa figura de poder é algo que buscamos desesperadamente, porque assim nos foi imposto. Como se isso fosse um ideal de força e hombridade. Esses pais vestiram capas de uma falsa macheza, que é só uma meninice rabugenta. Não houve real amadurecimento, por desespero para amadurecer. Quanto mais buscaram, menos conseguiram, como alguém que corre desesperadamente por um corredor que só cresce. Tenho tentado me soltar desse redemoinho, e o simbolismo tem me salvado. E ver Alejandro Jodorowsky fazendo um filme tão irreal, que se fez absolutamente realista para mim, só provou o quão anti-realidade eu sou.

Não anti a realidade em si, porque senão nem aqui eu estaria. Mas vivo numa balança que tenta se equilibrar sempre entre mundos. Me vejo marginal, por não estar em nenhum círculo, e por evitá-los a todo custo. Mas também estou no meio. Sou centralheaven, no fim das contas. Então, até por questões do espírito, de personalidade, seja lá o que for: não consigo ser extrema de nada por muito tempo. Sou andarilha. Detesto caixas, bolhas, paredes. Como menestrel, como poderia eu viver lá ou cá, se posso viver lá e cá? É sabido por diversos artistas, psicanalistas, espiritualistas, nada menores que os cientistas, que o que vem de dentro é tão necessário quanto a razão. Então, por isso tenho negado essa falsa realidade a que se prendem os acadêmicos, os não acadêmicos, os ignorantes. Ignorantes no sentido de ignorar algo que não vivem, e tecer opiniões precipitadas. Todos nós usamos sabedorias da terra em algum momento da vida. Assim como nos refugiamos na arte para não cometermos suicídio. E a arte é expressão humana do que vem de dentro, e um de dentro que vem de fora, porque temos aqui, finalmente, uma dança da realidade: o que a sociedade nos causa, faz com que respondamos a ela de algum modo particular. E nossa resposta é uma ação que tem como reação o próprio mundo. Um perfeito ouroboros, uma roda da fortuna. E isso é tão Camusiano. O Mito de Sísifo, de Albert Camus, fala sobre esse teatro que é o mundo, dos atores que somos nós, dessa tensão entre nós e ele. Porque buscamos, no mundo, respostas, e recebemos silêncio. Então, criamos nossas respostas, e isso é O Absurdo. A esperança é uma afronta a essa "realidade" que nos é duramente jogada na cabeça. E a minha esperança é circense!
Esse texto está agora naquele momento épico, como uma música que vai se desesperando ali do meio para o fim. São tantas coisas que posso me perder, mas é assim que me encontro. Passei anos de minha vida rejeitando o circo, quando na verdade tudo me leva ao picadeiro. Meu primeiro conto é num circo latinoamericano. O Auto da Compadecida é narrado por um palhaço, originalmente. O que é Chespirito? Os Trapalhões, que assisti com paixão por toda a infância? Monty Python flying circus? Pink Floyd live at Pompeii, num anfiteatro? Um menestrel sem público é o que? O que é uma Helen sem ouvintes, sem leitores? É uma Helen llena de nada.

Me comunico por metáforas, alusões. Me ponho nos personagens. Me achava Inaura, a que se perde em paixões, com ares de Lisbela, a que sonha belos-amores-fera cinematográficos, quando também sou Leléu. Esse viajante de caminhão por cidadezinhas interioranas, se transformando em diversas personas, utilizando diversos disfarces, nomes, máscaras. Se apaixonando e sumindo toda santa vez. Não permanecendo, cortando laços. Não sei dizer até logo. Meus "até logo" são verdadeiros adeus. Porque sei que, quando uma novela acaba, nesse Decamerão que é minha vida, ela realmente acaba. Leléu é o menino sonhador que se perdeu da família em uma noite em que passou um zepelim pela cidade. Absorto, absorvido pelo gigante nos céus, correu por ruas, areia e mar sem olhar para a terra nem para trás, mas olhando para o impossível. E eu sempre fui assim. Mas me prendendo, me perdendo, tentando me encontrar em chãos que nunca foram meus.
Mais do que amar a pessoa amada, eu amo amar. Eu amo o amor. Mais que amar aquilo que se acredita, eu amo acreditar. Mais que gostar das coisas que gosto, eu sou aquilo que gosto. Eu, amadora, transformo-me na coisa amada. Faço dela minha poesia. Acredito no impossível, porque nele é tudo possível. Acredito no infinito. Porque Eu Sou Amor, da cabeça aos pés. Sou absurda, camusiana, porque espero, sou esperançosa. Crio infinitos mundos, realidades, contos, possibilidades em minha cabeça. E ainda tenho tempo para me surpreender com os fatos. Por que me privar, por Deus? A vida é agora! Vive!

1. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica.
2. SHAKESPEARE, William. Hamlet.

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© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo