4.12.19

Conta comigo

Stand by me. Baseado em O Corpo de Stephen King. Direção de Rob Reiner, 1986.
As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem — as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas te olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou enquanto as estava contando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda. As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar.
Tem gente que chama Stephen King de "Rei do terror". Nem discuto essa nomenclatura. Mas eu o enxergo como um mestre do drama psicológico, digamos assim. Pode ser terror, mas não o terror que vejo pintado por aí.

Não li muitos livros dele. Li O Iluminado - que me deu muito medo -, A Coisa, Carrie, comecei Cemitério maldito umas três vezes, e Quatro estações, que penso ter sido meu favorito. Fora os filmes, que nem me lembro direito quais além de O Iluminado, A Janela secreta, Carrie, Christine, A Coisa (antigo) e também meu favorito Conta comigo.

E é sobre Conta comigo que quero conversar hoje.

Esse filme sempre me doeu a alma, porque é uma sessão da tarde, é infantil, e ao mesmo tempo é um desgraçamento da cabeça. Lida com memória, sonhos, aventuras, perdas e ganhos, morte, e o tempo que passa.

Primeiro, vou deixar claro aqui uma coisa: esse filme tem nada mais, nada menos, que River Phoenix. Irmão do Joaquin, ele morreu cedo, de overdose em frente a uma boate que na época era de Johnny Depp: The Viper Room. Está presente no disco Niandra Lades and Usually Just a T-Shirt de John Frusciante, que já tocou na mesma boate. Referências são sempre necessárias.
River Phoenix
A cena que mais me lembro desse filme, e talvez seja a mais icônica mesmo, é a do menino gordo vomitando torta de amora, fazendo com que todos os presentes vomitassem sem parar. Geralmente a gente ri e diz "que nojo!", mas a grande questão dessa cena é o bullying, ou, para termos atuais específicos, gordofobia. Toda uma cidade, não somente crianças, mas pais e professores, humilhando um rapaz que planeja sua nojenta, performática e magistral vingança.

Minha cena favorita talvez seja a dos sanguessugas. Ou todas. A motivação do filme é eles descobrem que há um corpo na floresta - o conto chama-se Outono da inocência: O Corpo - e querem ir até ali, confrontar-se com a morte. Infantil? Pode ser. Infantes são pessoas como os adultos, temos que parar de privar crianças de temas necessários para compreensão de si e do mundo, e estamos fazendo justamente o contrário, alienando-os, privando-os de frustração, quando eles, na verdade são mentes mais frescas e capazes de compreender as mais difíceis filosofias.

E eu só serei jovem uma vez!
Enfim, a aventura do grupo de amigos, cada um com sua característica, é ir juntos encontrar O Corpo e contemplá-lo. Quando chegam ao destino, O Corpo é observado quase que como em um ritual. Há reflexão, há contemplação. E há o olhar para trás e ver que a história, por mais que tenha sido motivada pelo objeto inerte a ser encontrado futuramente, a história esteve na caminhada. Nos perigos que eles correram, nas brigas que causaram, nos sonhos que tiveram, nas histórias que contaram. E isso trouxe a eles mais um pouquinho de maturidade, de compreensão da vida, de si mesmos e a amizade que alimentaram.

Isso é muito dramático. Porque viver é dramatizar. A vida é, como dizem, uma peça de teatro encenada ao vivo, intuitivamente, sem ensaios.

O que mais dói, na verdade, é o futuro, que depois é passado. O desfecho da história, onde os amigos vão morrendo um a um, e o mais pacificador dos amigos é o que morre numa briga de bar, tentando apaziguar querelas alheias. Isso é tão paradoxal, contraditório, não-natural, que é lindo, é belo. E a beleza dói. Um dia eu chorei até me engasgar, e sinto que aquela conteplação que rebentou o choro aconteceu porque foi a primeira vez que enxerguei o belo em minha vida.
“Não há tomada de consciência sem dor. As pessoas farão qualquer coisa, não importa o quão absurda, para evitar enfrentar a própria alma. Não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas vivendo conscientemente a escuridão”
[atribuida a] Carl G. Jung
Talvez o terror esteja posto não nos monstros alegóricos das histórias, mas no fato de o espectador ter que encarar as sombras arquetípicas da sociedade como um todo representadas nesses mesmos monstros. Que somos nós.
[...] Dizíamos “oi” a distância. Era tudo. Isso acontece. Os amigos entram e saem da nossa vida como serventes de restaurante, já reparou? Mas, quando penso naquele sonho, os corpos embaixo d’água puxando insistentemente minhas pernas, parece certo que tenha sido assim. Algumas pessoas afundam, é isso. Não é justo, mas acontece. Algumas pessoas afundam. [...] Eu? Atualmente sou escritor, como disse. Muitos críticos acham que escrevo bobagens. Quase sempre acho que têm razão... [...]. Minha história parece tanto um conto de fadas que é absurda. [...] A ponte mais acima foi demolida, mas o rio ainda existe. E eu também.
When the night has come 
And the land is dark 
And the moon 
Is the only light we'll see 

No, I won't be afraid 
Oh, I won't be afraid 
Just as long as you stand 
Stand by me
FIM

KING, Stephen. Outono da inocência: o corpo. In. Quatro estações.

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Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo