30.4.20

Lamento do exílio

Essa noite sonhei com meus antigos alunos no museu. Não eram as mesmas crianças da realidade, e a turma tinha mais de 20, de todo tipo. Estava animada. Em determinado momento da aula - estávamos todos deitados e cobertos, como que num cinema improvisado -, dois começaram a cantar Assum preto e eu os acompanhei. Eles, pequenos, sabiam a letra melhor do que eu. E eu lembro que pulavam uma estrofe que era a que eu sabia, e eu tentava cantar ela todinha, sozinha.

Costumo sonhar com música. Geralmente, quando isso acontece, é minha intuição soprando nos meus ouvidos.

Assum preto é a música mais triste que eu já ouvi.
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Antes de me deitar, dei uma desabafada incomum no instagram. Geralmente eu solto todo o meu veneno e meu ódio contra a geração e a classe média, porque hipocrisia é um troço que me tira do sério. Quase achei que era projeção, mas nem tudo é isso né? Eu só odeio mentira e falsidade mesmo. Mas enfim. Ontem o desabafo era um lamento.

Meu mapa astral foi lido no início de março, antes da quarentena se estabelecer. Uma coisa que me fez querer chorar, e que só deu mais corpo a essa sensação inominável que eu sinto, foi a astróloga comentar que meu Júpiter está em exílio. Na astrologia, isso significa que o planeta está numa casa diametralmente oposta àquela que rege. Ou seja, Júpiter, que costuma reger Sagitário e Peixes, está oposto a Peixes, em Virgem. Virgem é regido por Mercúrio. Imaginemos assim: o maior planeta do sistema solar, na casa do menor planeta do sistema solar. Como o grande cabe no pequeno?
O maior e o menor planeta do sistema solar - excetuando Plutão
Quando comentei da minha dificuldade em ter nascido e morar em São Paulo, e minha necessidade do Nordeste, aí que ela enfatizou o Júpiter em Exílio.
Você pensa que, quando se aposentar, poderá fazer uma casinha na praia, mas pensa nisso, porque falta muito ainda para esse momento acontecer. Nada voltará a ser igual. E não porque os outros mudaram, mas porque você se transformou em outro. E até é possível que não se encaixe nem no mundo de que partiu, nem no mundo em que foi parar. No final aprenderás a viver na fronteira dos dois mundos, um lugar que, embora possa ser de divisão, também é de reunião e ponto de encontro. Um dia de julgarás a si mesmo afortunando pelo fato de desfrutar da referida fronteira, e descobrirás que és mais completo, mais híbrido e mais imenso que qualquer outra pessoa.*

Não existe nada que me faça parar de dizer como odeio São Paulo. É algo maior do que eu. Meu lamento de ontem era justamente isso. Vi o story de um amigo da minha irmã na plataforma da Estação Carrão e, por um breve instante, eu quis fugir do planeta. Disse que não era nem medo de sair de casa quando acabar a quarentena, era pânico mesmo. De ter que passar por cada quilômetro, por cada estação, por cada vagão, por cada pessoa que habita essa cidade. Somado a isso, tem a questão de você sair de um período de aprisionamento para um que é o seu oposto. E mais: o meu ódio à minha geração. Eu definitivamente detesto o tal do millennial. É claro que sou, e tenho amigos que são. Mas essa adolescência mal resolvida de nós todos é algo que me deixa doente. Explicando para a psicóloga esse sentimento, jamais esqueço as palavras dela, que foram algo como: "é que eles são antítese do que você defende, né Helen?". O que eu defendo? A memória. Não chego a ser uma velha conservadora, mas também não sou dessa turma. Sou, novamente, exilada. Tenho uma necessidade doida de materialização das coisas e perfeccionismo também. Odeio tantas coisas que nem vou entrar no mérito.
Pra que serve o Nordeste?
Pra exportar nordestino
E qual é o seu destino?
é de cabra da peste
De Norte, Sul, Leste, Oeste
Na indústria ou construção
Mourão Voltado. Vital Farias
Mas tem uma coisa que detesto e posso comentar, porque é o que me fere mais: São Paulo, não só por ser a capital econômica do país, é a personificação do capital. Como Metropolis, como qualquer distopia, como Brazil, como o capítulo de Nova York do livro Tudo que é sólido desmancha no ar. Em janeiro assisti a O Homem que virou suco como quem se alimenta depois de quase desmaiar de fome. Esse filme é importante pra mim em diversos graus: cordel, Paraíba, São Paulo (grande bosta!), arte, violência, construção, casa "de família", burocracia, paulistas, nordestinos conservadores. E Zé Dumont, que desde o dia que vi o filme, me pergunto se já não topou com algum parente meu em Bananeiras, sua cidade natal e cidade vizinha àquela que quase que foi meu berço: Solânea.
Talvez uma referência a King Kong, O Homem que virou suco é o meu expressionismo nordestino
Eu tenho um misto de pena e raiva de quem ama ou sonha com São Paulo. Porque o grande defeito da minha vida é o defeito de fabricação. Eu fui forçada na nascer aqui, exilada. Porque meu pai sofreu na Paraíba e puxou minha mãe pra cá, grávida de cinco meses. Até hoje nem sei se ela queria (ela agora mesmo disse que queria, perguntei). E ele só veio por causa daquela velha história que se retroalimenta: São Paulo é a terra da "oportunidade". Porque você mina as oportunidades locais, concentrando tudo nesta grande máquina, e tem que, humilhado, se dizer muito agradecido por essa merda toda. Se tem uma coisa que eu não faço é agradecer o tempo todo como se eu fosse uma coitada. Eu não tenho que agradecer São Paulo por nada. São Paulo não faz mais que a obrigação e, convenhamos, nem faz sua obrigação. A humilhação é grande. E as pessoas são apaixonadas por essa grande opressora. Não tenho uma visão com lentes cor-de-rosa disso aqui não.
Às vezes sentia voltar
Como uma lembrança forte
Toda a vida passada
A infância no Norte
As amizades perdidas
Em seu caminho de sorte

Nesses ricos instantes
Pensava recuperar
Seu modo antigo de ser
Paraibano de fé
Pensava logo rever
Seus pais, tios, amigos
E pelos campos correr*
O que achei curioso nisso tudo, que sempre foi latente em mim, é que dessa vez eu vi numa perspectiva de eu dentro da coisa. Sempre tive a mania de ler o mundo como se eu não fosse dele - porque eu não me sinto dele -, e tenho passado a me colocar dentro da História. Historiador tem disso de contar a história dos outros e esquecer da sua (se for humilde né, porque se é esses acadêmicos que a gente topa a cada esquina, misericórdia). Eu contava a história da migração como se fosse dos meus pais. Da opressão ao trabalhador como se fosse aos meus pais. Mas eu não sou gente não? Não migrei e reemigrei? Não trabalho para o capital? A gente, quando faz uma faculdade porque lutou pra isso, engole uma parte e se acha privilegiado. Claro que tive mais condições que muita gente do meu bairro e da minha família, mas continuo sendo da minha família e morando no meu bairro. Sem ter vergonha dele, sem querer sair dele, sem dar uma de fresco como muito millennial do meu bairro e de outros bairros fazem. Ou gente que usa sua pobreza para ilustrar seu hipsterismo. Ou gente que usa o pobre pra dizer como é legal, como é galera, como nem é preconceituoso. Eu tô ligada, viu, nessas malditas máscaras sociais. E eu vejo isso borbulhando destampando os bueiros de São Paulo.
O final dessa história
É pra ouvir e entender
Depois disso vou embora
Tentando compreender
O que há de errado na vida
E faz a gente sofrer

Severino foi jogado
Numa rede e retorcido
Morreu ali esmagado
E seu sangue recolhido
Em garrafas de vidro fino
Virou suco de nordestino
E assim foi consumido.*

Tudo o que citei


* ANDRADE, João Batista de. O Homem que virou suco (Folheto de cordel). 1974. p.39-54.
ANDRADE, João Batista de. O Homem que virou suco (Filme). 1981
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar.
FARIAS, Vital. Mourão voltado.
GILLIAM, Terry. Brazil. 1985
GONZAGA, L; TEIXEIRA, H. Assum preto.
LANG, Fritz. Metropolis. 1927.
LEE, Rita. Tão.
** SOUZA, Thiago Romeu de. Lugar de origem, lugar de retorno: a construção dos territórios dos migrantes na Paraíba e São Paulo. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2015.
ZÉ, Tom. Com defeito de fabricação / Fabrication defect. 1998.

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Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo