19.6.20

Vulcânica

Erez Marom - Vulcão Kilauea, Havai.

Estava aqui agorinha conversando com minha xará de sobrenome, Alessandra Araújo, sobre processos criativos e marketing, por causa de um texto que saiu sobre a Amazon. Foi um fluxo de coisas na verdade, mas eu ando tão brainstormica que nem me atrevo a fazer sentido mais.

Há alguns dias estou alimentando a ideia de publicar. Seja um e-book de ensaios, contos, autobiográfico, seja uma zine digital, um pdf baratinho. Só que não sei onde publicar isso. Na Amazon é fácil, mas a política dessa empresa é tão anti-trabalhadora que, mesmo que eu diga que não me importo com a ética burguesa, eu me importo com a ética do proletariado. Então não sei como fazer.


Publicar grátis é muito fácil, e seria o ideal. Eu amo jogar meus textos por aí como fiapos de dente-de-leão soprados e propagados pelo vento. Me importa muito mais ser lida do que ser famosa, ou ganhar com isso. Mas, acontece que meu trabalho no momento é ser eu. E ser eu tem sido difícil. Mas prefiro a dificuldade de ser eu, ser o meu próprio meio de produção, do que voltar a me prostituir para o capital. Não era ruim trabalhar com o que trabalhei, pelo contrário. Não é isso. Sempre trabalhei com crianças e com educação, mesmo que eu negasse a Profissão: professora dentro de mim. Sou um Locke-Robertson de Antonioni, talvez. Minha angústia, e agora meu desafio, é fazer o que eu quero, o que eu sou e o que eu acredito. Acreditava no que eu fazia, mas não era eu. Eu emprestava a minha ferramenta de trabalho para produções alheias. E hoje tenho que moldar minha ferramenta para produções próprias. É como um artesão medieval trocando o ferro pelo barro. Talvez isso fosse absurdo naquele tempo, já que o ofício era hereditário, tradição, processos. Mas ontem na terapia defini que sou toda medieval. Talvez por ser pré-capitalista.

Michelangelo Antonioni - Professione: reporter, 1975. Jack Nicholson's David Locke/ Robertson
Fugi de tudo. Da minha mulher. Da casa. De um filho adotivo. De um bom emprego. De tudo, exceto alguns maus hábitos.
David Locke
Sobre os processos, também foi conversa minha com Alê e a terapeuta. Esta última me indicou o Ser criativo, de Stephen Nachmanovitch. É meu primeiro livro sobre processos criativos, que achei no scribd em inglês e aproveito para treinar o outro idioma. Porque eu amo e defendo o processo, mas tenho uma dificuldade enorme de não concluir um projeto quando ele demora mais que um dia. Isso diz muito sobre esse blog, inclusive, que tem tantos rascunhos quanto textos publicados. É sempre no calor do momento, porque - parece que - meu temperamento é colérico, e se eu vou esfriando, o magma endurece e torna-se pedra. Coisas de uma mente ansiosa.

Só que eu também sou lenta. E nisso eu entro na literatura. Ontem citei e fui relacionada a vários personagens dúbios da história da literatura. Dorian Gray, Dr. Jekyll & Mr. Hyde, Nina, de Black Swan. Lisbela e Inaura, Bela e Fera, Fragmentado. Na verdade o fragmentado é uma piada minha, porque a terapeuta apenas comentou de a minha arte ser fragmentada - o que explica minhas colagens -, e eu gosto muito de James McAvoy e desses 20 e tantos personagens em um só.

Mr. Night Shyamalan - Glass, 2019. James McAvoy's Kevin, Beast, Et cetera

E, conversando com Alessandra, chegamos ao marketing (por causa da publicação que eu quero vender). Não sei fazer isso. Comentei com ela que não sei ser "Oi, tudo bem? Texto aqui. E aí, como acontece com você? Escreve aí nos comentários!". Não sei ser "carinhosa" desse jeito. Eu sou carinhosa, mas parece que deve haver o mínimo de envolvimento pessoal. Socialmente eu sou muito seca e direta, ou pelo menos me enxergo assim. Minhas opiniões são diretas. Minha amiga Marina comentou em stories que sempre assisto a tudo quieta e que só abro a boca para coisas extremamente pertinentes. Foi um baita elogio, e eu me vi como aqueles bichos que moram em cavernas e só saem para dar o bote, como a Lasiodora parahybana (não pesquise se você é aracnofóbica/o), ou aqueles eremitas que moram distantes do mundo "civilizado". Nunca fui dada a grupos, e toda vez que tentei entrar em um, sentia que estava me traindo. E comentei com Alessandra que ser "carinhosa" assim na internet, por mais que seja uma estratégia de marketing, é ser falsa comigo mesma. Por isso eu tenho tanto essa facilidade de falar mal de qualquer poder simbólico da burguesia, isso me cheira a carne podre e eu sou um bicho que gosta de comer carne fresca. Mas nada contra quem é assim (na verdade tudo contra, pra que mentir?). O capitalismo exige.

Alessandra falou que talvez no mundo da escrita essa liberdade de não ser carinhosa é mais fácil de existir (na verdade eu entendi isso do que ela comentou). E me veio na cabeça feito um tijolo - porque não poderia ser feito pluma - Dostoiévski. Me lembro de ler Notas do subsolo (nunca sei se é notas ou memórias, acho que é Memórias do subsolo) como uma criança come um brigadeiro em festas de aniversário. Ou como eu criança comia balas de coco em festas de aniversário. É um livro curto mas é muito pesado, porque tem muito ódio e, que engraçado, é um homem encavernado no seu quartinho no subsolo da sociedade, provocando os cidadãos russos e, ao mesmo tempo, provocando a si mesmo! Uma associação ao vivaço nesse blog. Sincronicidade em tempo real. Eu me via aquele homem do subsolo, querendo arranjar uma briga com o guarda no bar, querendo não desviar seu caminho na praça, para o soldado ter que desviar e, se o soldado não desviasse, que eles trombassem e se engalfinhassem numa briga de morte, então. Isso é assustadoramente eu.

E, de Dostoievski, fui lembrando de Clarice, de Graciliano, de Guimarães. Até mesmo de Orwell. E agora Marx, Engels. Se você for ler todos esses autores, e até outros, como Kafka, é uma coisa tão horrível e arranhada, mas é horrível de lindo. É arranhado feito aguardente e violoncelo. Ou rabeca, um instrumento arcaico (medieval) da música feita no nordeste. E são os autores que eu mais me identifiquei desde sempre. Clarice é a caçula deles todos. Graciliano eu amei em Vidas secas, porque para mim Fabiano é meu avô e os meninos meu pai e tios. Baleia talvez fosse eu entendendo as secas que não vivi. De Guimarães eu li pouco, e acho difícil, mas viver não é mesmo um rasgar-se e remendar-se? Eu costuro, rasgo, colo, rabisco. Amo as ruínas, tendo trabalhado com patrimônio. Orwell é a minha vida acadêmica resumida, digo que amo Stalin mas adoro escrever sobre antitotalitarismos por aí. Marx e Engels tinham a ponta do bico-de-pena afiada demais, parece que escreviam com sangue e com sarcasmo. A coisa mais linda desse mundo são os prefácios à edição de mil oitocentos e qualquer coisa. É uma dedicação à contemporaneidade que me deixa besta. Poucos acadêmicos são assim. Conheço com a palma de uma mão, apenas, acadêmicos assim no Brasil. Mas eu sou difícil de agradar. Eu acho. E Kafka... O Processo, né? Sem querer dar spoiler de uma obra de quase cem anos, mas O Processo é um processo inacabado. Franz morreu antes de terminar. E só essa historieta já faz o livro valer toda a pena do mundo. O Processo é muito mais do que Dilma passou há poucos anos, por mais que valha essa comparação. O Processo é uma coisa que diz mais ainda de mim, e Orson Welles perfeitamente filmografou como eu mesma imaginava. Isso foi chocante demais para mim. Assim como o livro interminado, e a história em sua gênese inacabada, as edificações do filme também estão em processo de construção. Essa obra é um labirinto, assim como eu.

Orson Welles - The Trial, 1962. Anthony Perkins's Josef K

Estou dizendo tudo isso para me encontrar, mesmo. Porque estou perdidinha. Pareço tanto G. H. que não consigo ler esse livro porque cada linha me fere o peito, parece um soco nas costelas que nunca tinha levado antes. Então vou voltar aos instrumentos para não sofrer demais. Estava falando sobre o violoncelo ardido. Stephen Nachmanovitch, o autor do livro que comentei ali em cima, é violinista e suas músicas são rasgadas assim também. Eu gosto de Bach, de Liszt, de Prokofiev, Tchaikovsky, Vivaldi, Beethoven, todos pelo mesmo motivo. Ouço mais Mozart, mas por motivo um pouco diferente, então não conta aqui. Os seis primeiros têm algo de desesperador em alguns momentos e movimentos, e eu volto àquela cena de Gary Oldman: "gosto dos momentos de calma anteriores à tempestade, isso me lembra Beethoven". Ah, tem Ravel também. Colocando algumas músicas específicas desses artistas em perspectiva, é como, novamente, o vulcão em erupção. Você tem a calmaria, o crescendo, o ápice, a explosão, o escorrer da lava que, silenciosa e plácida, arrasa os arredores enrijecendo e se tornando obsidiana: um negro vidro vulcânico lindíssimo. Talvez esse seja meu processo. Na verdade é assim que eu sou também, mas a impressão é que sou tudo isso ao mesmo tempo. Explosão de calmaria, magma quente e macio, e um belo vidro bonito e duro que serve de espelho e joia.

Luc Besson - Léon: the professional, 1994. Gary Oldman's Stansfield

Não sei se vou sobreviver financeiramente nesse mundo capitalista de métodos de conquista de potenciais clientes, sempre fugi de administração, contabilidade, marketing e empreendedorismo como o diabo foge da cruz, e estou tendo que lidar com tudo isso agora, ao mesmo tempo, enquanto crio dolorosamente. Mas eu também sou teimosa. Alguns de vocês comentaram sobre eu escrever e isso me fez ver como minha escrita é importante. Não sei se há imodéstia em alguma fala aqui, mas sempre fui tão modesta que isso encheu meu saco, então nem me darei o trabalho de ser. Já é muito difícil, e eu não sei por quê, acreditar que as pessoas gostam do que eu faço, não porque eu não goste do que faço, mas porque sinto que poderia ter feito mais, ou melhor. Sei lá, é uma relação complicada. E por tanta modéstia e perfeccionismo, acumulei anos de aprendizados não postos em prática, e sinto que esse vulcão aqui está ativo. E essa lava quer arrasar Pompeias e Herculanos, destruindo civilizações, mas criando belíssimas ruínas para a posteridade. Engraçado, né? Criar ruínas. Isso é lindo demais.

Fiz uma playlist a partir das músicas que pensei para esse post, e achei a cara de Hefesto, o Vulcano romano, deus da forja, metalurgia, vulcões, ferreiros, artesãos e escultores, assim como eu. Vulcão é uma palavra que veio dele, então nada mais justo. A capa é Vulcan forging the Thunderbolts of Jupiter, de Rubens (1636-38), e está no meu museu favorito que jamais visitei, que é o do Prado. Playlists são também colagens. Desmembro discos, tal qual Saturno (de Goya, que também tem playlist), e crio mundos. Forjo estruturas.


Vou deixar vocês aqui, por mais que isso não tenha sido nem metade do que eu queria dizer. Peço dicas de como começar ganhar dinheiro com arte, escrita, não precisa ser muito. Ko-fi? Patreon? Apoia-se? Algo mais simples? Ou, ainda, dicas de leitura sobre criatividade e criação. Processos. Gêneros literários. Já agradeço de antemão!

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© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo