26.9.20

Eu não sou besta pra tirar onda de herói

Alan Moore & Dave Gibbons's Watchmen IV, p. 19
Às vezes eu venho escrever aqui sobre temas que nem queria, mas eles vão acontecendo na minha vida como nós em um novelo, é tão engraçado.

Desisti de comentar minhas opiniões políticas, né. Na verdade, eu desisti de comentar de um modo muito padronizado que nossas gerações Millennium e Z comentam, seja em infinitos comentários nas redes sociais, ou em reels e tiktoks. Apaguei o twitter três vezes nos últimos 10 anos sempre pelo mesmo motivo, e não tenho a mínima vontade de voltar. Eu decidi me isolar de um modo parecido com aqueles hippies do apocalipse em filmes de fim do mundo. Na verdade, decidi ser quem sempre fui, né? Uma pária.

Roland Emmerich's 2012. Woody Harrelson's Charlie Frost (juro que não lembrava que essa cena continha um vulcão hahaha)

Acontece que, há algum tempo já, a palavra "herói" vem flutuando na minha frente, em todas as situações possíveis. Aproveito para escrever esse texto hoje, um dia após a chegada do meu bem mais precioso do momento, que é a HQ de Watchmen.

Lembro da desmistificação dos heróis nos tempos da faculdade. Tem um livro que despe a imagem de Tiradentes, da Justiça, da República, que é do José Murilo de Carvalho - A Formação das almas: o imaginário da República no Brasil. Faz tempo que li, e não inteiro, mas jamais me esqueci de como nossa República foi uma criação de uma elite militar e liberal, e por "liberal", não se faz menos racista. Não sei se minha explicação está atualizada, pesquise se você quiser, porque eu desisti da Universidade também hahaha. Me lembro do professor comentando como Tiradentes foi posto como um coitado à imagem de Jesus Cristo, que foi desmembrado e exposto em praça pública, um herói da independência com fama tardia. Enfim, essa historiografia do 19 é uma bagunça, uma maquiagem, e também o registro e a face de uma época. É e não é real. Mas não é isso que vou comentar. O que vou comentar é que fiquei com esse anti-heroísmo na minha cabeça. Consigo admirar personagens históricos, literários, mas sem nem fazer pouco, nem muito caso. São pessoas. Ou personagens. Ou pessoas-personagens.

Com o propósito de despir também em praça pública essas criações do passado, muitos pesquisadores e estudantes criaram discursos tão rasos quanto os que eles queriam criticar, fazendo com que muitas obras do passado fossem rechaçadas, sendo que, querendo ou não, elas têm valor. Histórico, né. Historiador é detetive, trabalha com fatos, feitos. Tudo é precioso. Claro que somos e devemos ser críticos, mas uma coisa que detesto na minha profissão é uma ironia pobre cozida e reproduzida no meio acadêmico. Virou piada chique dizer que o Imperador montou num jumento e estava com dor de barriga, e que o quadro do paraibano Pedro Américo era uma "men-ti-ra". Não, né gente. É uma interpretação artística que significa algo subjetivo, simbólico. Tem a ver com onde ele estudou, que foi na Itália, com quem encomendou a tela, com a mensagem que queriam passar. É tipo a gente hoje fotografando para o instagram com milhões de efeitos e objetos para compor a imagem: quem lê com pisca-pisca aceso, bonequinhos e folhas secas no chão? Espero que ninguém. É bonito e tudo mais, mas é tão criação quanto.

Mas também essa não é a crítica que quero fazer, há! O que eu acho engraçado é que (isso não é o meme) tanta gente se mostra diametralmente oposta a criações do herói do passado, ou a padrões de pensamento, que criam um espelho desses padrões e crenças.

Desde o tema já bastante discutido - e talvez já esquecido - da iconoclastia em obras públicas feitas em homenagem a figuras assassinas e opressoras, a palavra "herói" tem me assombrado. Porque vi pipocar postagens do tipo "verdadeiros heróis que deveriam ter tido estátuas em sua homenagem". Espera: até ontem herói não era uma criação, e os discursos pendiam para "não existe herói, isso tudo é criação de um ser perfeito super-humano ou não-humano que salva o dia feito as Meninas superpoderosas"?

E não parou pelas postagens. Estou lendo um livro muito bom sobre personagens brasileiras negras que não tiveram suas histórias contadas, mas já torci o nariz para cada momento em que li heroína, heróico, herói. Em algum momento da vida, e isso claramente é fruto de situações particulares e públicas, eu fiquei avessa à ideia de herói. Não só por causa da aula do Tiradentes. Nem porque é necessário destruir o pedestal do opressor sempre que possível. 

Meu negócio é o seguinte: pessoas são pessoas. Com feitos admiráveis, com feitos terríveis. Como a Jane Austen, que conversei hoje com a Mia como ela é boa escritora, mas aparentemente destruiu a imagem do gótico escrito por mulheres ou algo do tipo*. Ou o H. P. Lovecraft, que é o escritor de terror mais saboroso que já li, mas era racista, machista, entre outros -istas, o que combina com sua posição temporal, de gênero e geográfica, compreendo, mas nem por isso é menos errado ética, moral, politicamente. E, por H. P., por que não falar da transfobia da J. K. Rowling? Que mulher chata, meu deus do céu. Detesto ela desde quando decidiu que jamais continuaria a saga do bruxo-mimado-com-pais-horríveis, mas a cada semana inventava uma curiosidade sobre um personagem no twitter e dizia que sempre pensou nisso, só não disse antes. Enfim, a lista de pessoas com pensamentos terríveis e artes maravilhosas, ou vice-versa, é extensa e interminável, porque nenhum deles é Deus, muito menos herói. Mesmo aqueles que contribuíram bravamente para movimentos sociais e lutas armadas no Brasil e no mundo. Vocês acham que eu gosto do cangaço e da União Soviética porque sou iludida e acredito no suposto heroísmo de Virgulino Ferreira e Josef Stalin? Nope


Eu sei da violência, dos abusos, dos assassinatos. Não necessariamente concordo, e dizer que discordo seria mentir para mim mesma. Mas aconteceu e o tempo não volta. Nem quero que volte, amo ficção científica, mas sou avessa à máquina do tempo (porque tudo pode piorar). Tem um trecho de livro A Era dos extremos do Eric Hobsbawm que amo compartilhar há muitos anos:

A principal tarefa do historiador não é julgar, mas compreender, mesmo o que temos mais dificuldade para compreender. O que dificulta a compreensão, no entanto, não são apenas nossas convicções apaixonadas, mas também a experiência histórica que as formou. As primeiras são fáceis de superar, pois não há verdade no conhecido mas enganoso dito francês tout comprendre c’est tout pardonner (tudo compreender é tudo perdoar). Compreender a era nazista na história alemã e enquadrá-la em seu contexto histórico não é perdoar o genocídio. De toda forma, não é provável que uma pessoa que tenha vivido este século extraordinário se abstenha de julgar. O difícil é compreender.

Daí que estou fazendo um curso de empreendedorismo no Sebrae - sou expert em cuspir pra cima e receber o cuspe bem dentro do olho, pois detestei sempre tudo relacionado ao tema - e é óbvio que eles pregam esse discursinho Luciano Huck meia-boca de que a superação de um pobre que se deu bem na vida é coisa de herói. Aí a pessoa pobre que vê uma coisa dessas acha que "ah, é porque ele nasceu com a bunda virada pra lua; ele nasceu pra isso; podiam ter mais pessoas assim no mundo".

Lembrei agora do tempo em que eu trabalhava no museu e achavam uma pena não existir pessoas como o Conde (ele era empreendedor do 19), mas ninguém pensava (e nós tentávamos questionar isso) que elas podiam empreender nas suas vidas cotidianas, seja num estabelecimento ou num simples conselho ou abraço dado a quem precisasse de amparo. A gente sonha com pessoas impossíveis, e com isso se acha incapaz. Todo mundo é capaz de muita coisa. O que caga tudo é que todo mundo tem oportunidades diferentes (muita ou nenhuma), questões psicológicas tratadas ou pioradas, falta ou excesso de incentivo, descrença em si mesmo ou no outro, enfim, uma teia de empacamentos. E essa ideia de herói, pra mim, seja ele um opressor ou um sobrevivente, é balela, ajuda a empacar os "não heróis".

E é por isso que eu gosto de Watchmen. Alan Moore pegou o arquétipo do herói dos quadrinhos e meteu numa HQ cheia de nuances (que vocabulário mais intelectual Santa Cecilier), numa história onde os heróis existiam de fato numa América de Guerra Fria, mas despidos dessa aura de Super Homem e protetores do cidadão comum. É tudo um bando de gente errada, anticomunista, violentos até dizer chega, niilistas talvez, assassinos, que se deparam com mais uma mentira, mais um mito de criação do herói (nesse caso de criação de um bode expiatório para um genocídio), que desemboca numa falsa paz entre oriente (socialismo soviético) e ocidente (capitalismo). Eu AMO cada pedaço dessa história. Porque são antiheróis. Porque é desesperadora. É uma piada. É uma mentira! Como se aceita uma paz mentirosa, meu deus do céu? Que coisa horrível! Parece pesadelo sem fim que a gente vê tanto em seriados, filmes, livros, ou na vida mesmo. Aquela coisa perfeita, moldada, com final feliz. Não. A vida não é isso.

Enfim, eu só queria dizer que (busquem conhecimento):

Eu não sou besta pra tirar onda de herói
Sou vacinado, eu sou cowboy
Cowboy fora da lei
Durango Kid só existe no gibi
E quem quiser que fique aqui
E entrar pra história é com vocês

Não é que eu esteja dizendo que não devemos admirar feitos incríveis de pessoas que nos inspiram a ser melhores e lutar pelo que acreditamos. Nós devemos admirar feitos incríveis de pessoas que nos inspiram a ser melhores e lutar pelo que acreditamos. O que nós não deveríamos é pedestalizar as pessoas pelos seus feitos. Muita coisa aconteceu, ou não aconteceu, para aquilo ser extraordinário. Não é porque a pessoa é um iluminado por Jesus, ou "perfeita, sem defeitos" (o vocabulário da nossa contemporaneidade é o pior, credo). Mas o feito daquela pessoa, o trabalho dela é útil para nós termos como exemplo do que fazer ou mesmo do que não fazer daqui pra frente. Isso é História pra mim: conhecer o que aconteceu, pensar e agir no agora a partir dos exemplos bons e ruins do passado, e criar um futuro cada vez mais satisfatório para nós e os próximos da nossa maldita espécie, e das outras espécies também, coitadas, que têm que conviver com essa droga de Homo sapiens sapiens de nada.

Tem uma frase que detesto, que muita gente usa inclusive. Mas que me decepcionou quando vi sair da boca de um professor que gosto muito: "quando eu crescer, quero ser como fulana". Eu não, oxe. Quando eu crescer, quero ser como eu! Nasci eu, pra que diabos quero ser como o outro? E daí se o outro tem 300 páginas de currículo? Mansões, dinheiro, iate, mulheres?

Minha filosofia de vida sempre foi descobrir quem sou, o que vim fazer aqui, e contribuir com minha particularidade para a sociedade em que vivo. Por causa dessa bobagem de herói, fiquei anos aprisionada num suposto dever de militar com a minha geração de forma incansável e inumana contra o maldito capital e suas mazelas eternas. Claro que minha maior utopia é um misto de sociedade comunista com corporações de ofício medievais, mas eu nunca, jamais acreditei que veria o comunismo posto em prática enquanto eu viver. Vivo em sociedade porque as cartas jogadas na mesa são essas, mas eu não sei ser da multidão, não sei ter sororidade, porque acho falso, imposto (inclusive, pelo amor de deus, evitem me chamar de mana, não te dei intimidade pra isso), não sei gostar de classe média, mesmo a progressista (e nem pretendo). Não sou besta pra tirar onda de herói, é isso. Deve ser por isso que meu logo aqui é uma ovelha. Pensa que eu sei porque tem uma ovelha ali em cima? Eu não sei não! hahaha. Só amo a Revolução dos bichos. Mas dos animais, ironicamente amo os porcos. As ovelhas pra mim são a massa balindo encaminhando-se para o matadouro. Aquela ovelha ali deve ser a desgarrada.

Engraçado que Watchmen ia ser meu TCC esse ano. Mas acharam muito pouco "útil" para a sociedade brasileira escrever sobre uma HQ britânica. Porque "o que você poderia acrescentar numa pesquisa que os próprios conterrâneos do Alan Moore não já sabem?" - ouvi, há um ano e meio. Só ontem me veio em mente que eu poderia ter sustentado minha ideia e ter dito "bem, eu acrescento um pensamento em lingua portuguesa brasileira e trago essa crítica fantástica a tantos símbolos e situações sociais, políticas e econômicas que moldam nossas gerações pelos quatro cantos do mundo, usando um objeto popular e de lazer como ferramenta política. Mas meu tempo é outro. Slow ride...

Sei lá, eu não consigo ter paciência pra humanidade justamente porque é tanta besteira no meio de tanta coisa linda, eu fico biruta com isso. Agora eu vou embora, porque esse tema me ferve tanto que eu ficaria dias elaborando sobre cada parágrafo escrito. Quem sabe não vira uma tese de doutorado um dia, né?

Mas fica o recado, que é bem Pitty: seja você, mesmo que seja bizarro. Não acredite em meritocracia, mas também não desista de sonhar e, principalmente, agir, na medida do possível. Lutar, sempre. Viver é uma luta. Só se vive uma vez. Não acredite em heróis, não vale a pena. Isso é uma das diversas maneiras de hierarquizar, tornar exclusivo, extraordinário, impossível. Os bons feitos são ferramentas e combustível para mais boas ações, e não algo para se babar como objeto intocável num museu. Inclusive: os objetos dos museus são para conhecimento, não para ostentação ou baixar ainda mais a autoestima dos cidadãos comuns. Trate tudo com respeito, mas não seja subserviente, nem subestime - ou superestime, o que é muito pior - algo ou alguém.

Vive!

Meu deus, como amo - e sinto saudades de - um bar, uma briga, um carteado, uma sinuca, uma aguardente e toda essa ambientação de faroeste de cowboy!


* Aqui dois textos sobre Jane Austen e a sua sátira que vou ler depois, porque achei interessantíssimo: 

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© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo