27.11.19

Por que eu escrevo

Quando estou muito desesperada, sinto o vento que abraça a minha pele. É como o primeiro respiro de um recém-nascido.
42. Transforma tua cólera em criatividade.
Esses dias, na terapia, a psicóloga lembrou de Patti Smith quando eu falei uma frase sobre ser fantástica no sentido de pertencer do mundo da fantasia, assim como os personagens de Cem anos de solidão. Na autobiografia, Patti diz que vivia no mundo dos sonhos, e como recompensa, seus professores, que não achavam nada disso prático para o mundo da razão, a punham sentada num banco alto com chapéu de burro na cabeça. E Patti Smith, para quem não sabe, é essa maravilhosidade que exponho abaixo, com trecho de uma música batida, mas que bateu em mim em agosto, que estourou-me uma crise de choro e tremedeira, que me fez iniciar meu acerto de contas com Shiva um ano depois de ele ter me cobrado transformações.

Patti Smith - Horses
The plot of our life sweats in the dark like a face
The mystery of childbirth, of childhood itself
Grave visitations
What is it that calls to us?
Why must we pray screaming?
Why must not death be redefined?
We shut our eyes we stretch out our arms
And whirl on a pane of glass
An afixiation a fix on anything the line of life the limb of a tree
The hands of he and the promise that s/he is blessed among women.
Depois que ela leu o trecho da Patti falando que era uma eterna sonhadora, eu me lembrei de uma coisa que decidi comigo mesma, mas não lembro se falei para alguém, ou se soou inédito naquele momento: eu, desde os 16 anos, escrevo sonhando, desejando, buscando as palavras que conseguissem, não apenas dizer o que sinto, mas que as pessoas também sentissem a minha dor.

Ela arregalou os olhos.

Eu, de fato, não falo à toa. Tudo o que digo tem razão de ser. Não falo palavras ao vento, para não serem lidas, ou para não serem ouvidas. Eu falo para serem sentidas, vivenciadas, comidas, digeridas. Vim aqui para causar impacto. Odiava quando recebia comentários e conselhos secos e vazios, justamente porque ia contra meus propósitos. A palavra tem poder, e eu sei muito bem disso. É por meio dela que histórias se perpetuam, e pela falta dela que histórias morrem.

Aí eu descobri que tem vários anônimos me lendo há anos. Volta e meia alguém me diz que me leu, me agradece por se sentir no meu texto. A coisa mais fofa que já me aconteceu é descobrir que o irmão da minha amiga favoritou meu blog há dois anos e ela nem lembrava que tinha comentado do meu blog para ele. Acho que estou vencendo na vida.

Como comentei aqui, achava que odiava poesia porque não compreendia. Mas a dor traduz todas as palavras ilegíveis. A dor causa espanto, abre o céu e apresenta o clarão do sentimento. Rasga. E eu passei a entender poesia. E a dor pode ser num nível tão grande que, sem medo dela, eu vou lá e enfrento aquilo que me causa medo, porque é tudo o que me resta. E vou testando a dor, colocando o dedo na ferida, para ver o quão profunda ela é, até onde ela vai, se precisa de amputação, se vai gangrenar, se é superficial, se vai deixar cicatriz. E nisso, eu vou me conhecendo. E vou entendendo o mundo, e aprendendo novas linguagens.

Meu último autoembate foi indo ao teatro, em consideração a um amigo. A peça chamava-se As Mãos Sujas, texto de Sartre. Era só isso que eu sabia. Eu levei um amigo e uma forte amargura dos encontros perdidos, e outra vez me perdia no fundo dos meus sentidos, quando me deparei com os atores no palco, incorporando seus personagens, de um jeito afetado que eu achei que odiava e achava desnecessário e burguês, mas dessa vez me enxerguei ali. Porque eu descobri que sou assim. Expressiva para um caralho, não sei dizer meias palavras: esfaqueio palavras.

Por toda a peça, que falava de um Partido comunista e modos distintos de pretender uma revolução, apenas a carne me ardia. O personagem principal, que era a cara do Ariano Suassuna de setenta anos atrás, vivia num dilema existencialista, e dançava como eu danço, a música que, em desespero, dancei. Botava as mãos espalmadas nos olhos, como um monstro de Labirinto do Fauno, demonstrando a fraqueza de um homem e a vontade de ser de novo um bebê indefeso, irresponsável e dependente, como nós nos sentimos e queremos no momento de ápice da dor. Ele gritava, gritava para ser ouvido, porque, por mais que ali existissem camaradas e esposa, ele se sentia só. Se sentia um desamado. E via na ideologia seu motivo de ser. Um motivo combatido por aquele que foi o único que ele sentiu que o amou, e que ele mesmo matou.

As Mãos sujas. Texto de Jean-Paul Sartre e Direção de José Fernando Peixoto de Azevedo. Assistência e operação de luz: Guilherme Soares.
Foi lindo, chorei. Inclusive pela trilha sonora. E saí chorando pela chuva com amigos, e percebendo que eu estive onde deveria estar. O teatro não é o monstro que pintei. O teatro é a síntese de quem sou. Exagero. Dor. Sentimento. Oceano. Tormenta. Dança.

Ainda nessa sessão, a terapeuta me comparou com Ewá, a Senhora dos Cemitérios, que se transforma em névoa. Não consigo acessar no momento o livro Mitologia dos Orixás, mas ela não se sente completa no mundo dos homens e na materialidade, então vive como bruma. Achei isso lindo.

Sou criatura das sombras e do inconsciente, e minha iniciação em espiritualidade mesmo foi bem característica. A primeira vez que me senti em êxtase, foi no dia 31 de outubro de 2017. Um dia das bruxas. Um ano depois, prometi e cumpri que meu primeiro evento num espaço relacionado a arquétipos, seria o de Perséfone. Nada mais, nada menos, que a Senhora do Submundo, A Sacerdotisa do Tarot Mitológico, sobrinha e esposa de Hades, um deus não cultuado e mal visto por desconhecimento de seu poder e necessidade de ser: senhor da morada dos mortos, e responsável por fazer brotar as sementes enterradas no solo.

A psicóloga também me fez assistir a Malévola. Nem tenho palavras para comentar o resultado.

Gosto de tudo aquilo que afeta. Que abala. Eu sou um vulcão. O próprio Vesúvio transformando os citadinos de Pompeia e Herculano em cinzas. E das cinzas eu sempre retorno como Fênix: a águia dos romanos e o pavão dos hindus. Carcará. Bacurau, o pássaro noturno. O Corvo de Cronos.

E de Pompeia eu sou os gritos de Careful with that axe, Eugene, mas também sou o coro das celestiais vozes de A Saucerful of secrets, o canto para a minha morte. Porque sou eu mesma um pires cheio de segredos.

Escrever é vomitar os meus demônios e encará-los de frente. Renato Russo diz: não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas. Eu diria: não tenho medo do escuro, apague as luzes! Medo eu tenho dos meus anjos.
Eu sei de muita coisa que não vi.
Vocês também, eu sei.
Não se pode dar provas da existência daquilo que é mais verdadeiro.
O único jeito é acreditar. E acreditar chorando.
Esse show é feito em estado de emergência e de calamidade pública.
Trata-se de um show inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta essa que eu espero que alguém no mundo me dê.
É um show em tecnicolor, para ter algum luxo por Deus - que eu também preciso.
Amém - para todos nós.
Clarice Lispector e Maria Bethânia
O que será, que será? Que andam suspirando pelas alcovas Que andam sussurrando em versos e trovas Que andam combinando no breu das tocas Que anda nas cabeças anda nas bocas Que andam acendendo velas nos becos Que estão falando alto pelos botecos E gritam nos mercados que com certeza Está na natureza Será, que será? O que não tem certeza nem nunca terá O que não tem conserto nem nunca terá O que não tem tamanho... O que será, que será? Que vive nas idéias desses amantes Que cantam os poetas mais delirantes Que juram os profetas embriagados Que está na romaria dos mutilados Que está na fantasia dos infelizes Que está no dia a dia das meretrizes No plano dos bandidos dos desvalidos Em todos os sentidos... Será, que será? O que não tem decência nem nunca terá O que não tem censura nem nunca terá O que não faz sentido... O que será, que será? Que todos os avisos não vão evitar Por que todos os risos vão desafiar Por que todos os sinos irão repicar Por que todos os hinos irão consagrar E todos os meninos vão desembestar E todos os destinos irão se encontrar E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá Olhando aquele inferno vai abençoar O que não tem governo nem nunca terá O que não tem vergonha nem nunca terá O que não tem juízo...

Chico

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Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo