10.11.23

Believers keep on believin'

Amigos, romanos, conterrâneos, emprestem-me seus olhos, porque demoro a escrever, mas quando venho é para me demorar nas palavras. Este é um relato de viagem, graças a Deus. Precisava viajar.


Ainda existia Orkut quando comecei a escrever em blogs. Eu adorava preencher formulários, participava de comunidades, coloria os textos. Tenho certa devoção pelas palavras não apenas em forma e conteúdo, mas em aparência também — por isso sou doida por tipografia, iluminura, caligrafia carolíngia e tenho umas 4+ caligrafias próprias. Não que isso importe muito agora, mas foi a imagem que me veio em mente quando pensei na época em que comecei a me dedicar à escrita. Uni a beleza da customização das palavras com a vontade de falar, porque sempre falei mais por escrito, e porque sou como João Cabral de Melo Neto: quero dar a ver as coisas. Mas há aí um terceiro ingrediente nessa fórmula, que é sobre o que escrever. O que era a minha primeira paixão da pesquisa? Sobre o que eu queria falar? Qual era a minha obsessão?

Red Hot Chili Peppers é o ingrediente faltante. Era em comunidades deles que eu passava horas do meu dia após a escola, baixando fotos, lendo comentários de fãs, etc. Os conheci ou na Mix TV ou na MTV, não me lembro agora. Foi no blog do meu amigo Rodolfo (que eu vi na fila do show!) que eu descobri o que era um blog, e talvez por lá eu descobri o da Eve. Isso era fevereiro de 2008. Zip.Net o dele, e o dela já não me lembro o site. Eve sempre falou de Frusciante, e foi mais ou menos por aí que comecei a pesquisar a carreira solo dele, da qual sou fã. Canso de dizer que @centralheaven resulta de central e heaven, do The Empyrean.

Vários motivos — o principal deles o medo, por mais que a vida financeira também — me fizeram fugir de shows de estádio nos últimos dez anos. Nunca havia ido em um. Várias bandas que amo vieram diversas vezes e nunca as vi. Nem mesmo o Red Hot. Mas, sejamos justos: John saiu em 2009, e eu tinha 17 aninhos apenas. Então para mim havia morrido essa possibilidade, e a maioria das minhas bandas favoritas já se acabou mesmo.

Acontece que John voltou. E a banda resolveu vir para o Brasil. Como não sabemos da cabeça pisciana de John, minha irmã, minha amiga e eu decidimos não arriscar: resolvemos ir, custasse o que custasse. Dinheiro custou, obviamente. Naquele momento Bella ainda não estava doente. Dinheiro o capitalismo faz girar, uma hora se tem e outra não, isso é o de menos. Mas a safadeza do eventim ou cambistas (ou os dois) não nos permitiu conseguir comprar o lugar que queríamos em São Paulo. Daí, em desespero de uma fã desde criança, minha irmã disse para tentarmos no Rio. É perto daqui mesmo.

Falei na newsletter e no instagram dos sonhos que o Destino sonha para a gente. Rio sempre foi o sonho de minha irmã, não meu. Red Hot era uma coisa que tava bom ouvir de longe... Quem sabe um dia na Califórnia... (diz a pessoa que nem passaporte possui). Enfim, um devaneio, um sonho de uma noite de verão, como diria o Collor.

O Destino sonha para a gente. Não imaginei essa viagem, porque sou ansiosa. Tinha certeza que estaria emburrada e triste até a hora do show, e só uma semana depois entenderia o que se passou, porque a ansiedade é um Gollum dentro de minha cabeça. Mas algo em mim mudou do meu aniversário pra cá. Deus queira que seja maturidade, porque estou sem vergonha de viver e de brigar pelo que eu quero, mesmo com medo. Não tive um pingo de ansiedade quando chegou a hora desse evento planejado lá em março. E em março, no dia do ingresso, estava uma pilha de nervos e no fim do dia lembro de ter chorado, e quando choro costumo lembrar dos lutos que venho vivendo desde 2019.

Chorar é bom que lava a alma. Não teve nada disso quando a hora chegou. Fiquei em paz na minha parte mais esperada da viagem (que é sempre a estrada, para eu poder ouvir meu rock vendo o mundo), me estranhei com a cidade numa primeira olhada (porque me lembrou muito São Paulo, em diversos aspectos, e fiquei: ué), descobri que não poderia ver a Biblioteca Nacional por causa do feriado, mas tudo bem...

O CRISTO

Daí que começam as coisas do Destino: eu não ia pro Cristo. É bom lembrar que não é porque meu Estúdio é São Jerônimo que sou extremamente católica. Não, não. Só um pouquinho assim 🤏🏻. Estou mais para o que se conhece por neopagã. Eu não ia pro Cristo porque não achava a estátua lá essas coisas e morro de medo de altura. Daí disse e avisei em casa: não vou pro Cristo. Fui pro Cristo. E foi uma coisa engraçada que me lembro e dou risada toda hora: disse que não ia pro Cristo na hora das meninas comprarem os ingressos, minha irmã me olhou e me disse: "vamos! não é você quem gosta de medo?". Eu gosto de medo. Eu gosto de medo! Ri e fomos pro Cristo. 

Não senti medo. Senti uma beleza porque o Morro do Corcovado fica no Parque Nacional da Tijuca e a coisa que eu mais amo na vida é a Terra em sua originalidade. Tanto, que quando penso na Morte, desde moça, imagino que o Paraíso seja eu e as plantas, e nada mais. Ninguém mais. Então ver a natureza é ver Deus, e por isso mesmo precisei reviver deuses pagãos para acreditar e ser devota, sendo o principal deles o Tempo. A gente sobe o Corcovado de trem, passa pela floresta da Tijuca, fica a pelo menos 60º de inclinação (estou chutando com meu olho matemático), sobe umas escadarias se segurando na pedra porque os ossos das pernas viraram caldo de mocotó, e o Cristo nem é tão grande, mas o Cristo é Deus, sabe? Não me interessa se tem Cristo na sua religião ou não-religião. Cristo ali é Deus porque "Não existe Deus senão o homem", e o ser humano subiu 709 metros acima do nível do mar (às vezes se inclinando em quase 90º, digo com exagero) para colocar uma estátua de pedra de 30 metros que representa Deus em cima de um mármore de mais 8 metros que foi posto nesses 709 metros... Em 1931, no ano de nascimento de minha eterna vovó Ritinha. E puseram ali a ferrovia que foi inaugurada pelo D. Pedro II em 1884. Mas até então não era o Cristo e sim um coreto para ver a cidade... Ver o mundo... Tal qual Fausto quando se torna o Fomentador e manda destruir a casinha dos velhinhos para conquistar o que viria a ser o mundo moderno do Capital. Não que os construtores do Deus brasileiro tenham desabrigado um casal de idosos tal qual Fausto, mas obviamente foram trabalhadores (e escravos no caso da ferrovia) quem construíram Deus.

Então, assim. O feio Cristo é lindo. O Cristo Redentor de certa forma causou a minha redenção, porque chorei ao ver Deus no Céu ao lado dos helicópteros. Chorei maravilhada e com medo, porque meu medo de altura não é olhar para baixo, é olhar para cima e o chão se soltar dos meus pés (e eu voar?). Tinha muita gente ali, e pela primeira vez não me irritei com multidão, talvez porque eles me protegessem das beiradas, porque daí se apresentaria a segunda parte do medo, que é o medo de saltar (a tal da pulsão de morte, eu acho). Enfim, foi lindo. Fiz um pedido, chorei, vi toda a cidade, e o Céu se unia ao Mar, mostrando que é verdade aquela máxima hermética "o que está em cima é como o que está embaixo", que depois os cristãos utilizaram no "assim na Terra como no Céu". Belíssimo.

RHCP NO RIO


Esse feriado foi atípico, quase que um primeiro episódio de Mulheres Apaixonadas onde a Helena, num dia só, levou a empregada para a maternidade e foi doula, foi no velório da esposa do ex, e ainda no casamento do sobrinho. Por que eu digo isso? Os ubers da cidade estavam dando conselho de sair cedo para evitar trânsito, pois no mesmo dia aconteceria a final da Libertadores no Maracanã (Fluminense x Boca Juniors), o show do Red Hot no Engenhão, o show do Roberto Carlos na Gávea e a demolição da Universidade Gama Filho, em Piedade. Saímos cedo e não nos deparamos com caos nenhum, mas foi bom porque ficamos num lugar ok da fila. Olha, uns anos depois e eu não aguentaria esperar tanto. Por sorte foi um dia completamente nublado. {Vou fazer como em click e adiantar as horas} esperamos por horas, e na hora de caminhar meu amigo Rodolfo (de anos!) me viu e nos demos oi rapidinho (vejam bem: ele é de São Luís, eu de São Paulo, nos encontramos no Rio de Janeiro sem saber que o outro iria, na mesma entrada do estádio!). Que mundo pequeno.

A banda que abriu o show tinha uma particularidade: o guitarrista da IronTom é filho do primeiro baterista do Red Hot, o Jack Irons. E essa banda é uma delicinha de ouvir, bem californiana mesmo.

Não tenho palavras para explicar o Red Hot Chili Peppers. Por mais que eu seja fã das pessoas, acho que não sou desesperada (como os otários na frente do Fasano atrapalhando a intimidade da banda), são seres humanos obviamente, nossa relação é de trabalho e arte. Nunca os havia visto pessoalmente, e ao mesmo tempo pareciam meus parentes distantes da Califórnia. Demorei a abertura e Can't Stop quase toda para entender o que estava acontecendo, daí chegou o solo que eu amava tanto na adolescência e eu me debulhei em lágrimas. Mas só um pouquinho, e daí fiquei assistindo assim... Não maravilhada, ou talvez tão maravilhada que fiquei meio inerte. 


Acho que engulo as emoções, e já devo ter falado aqui. É como se eu tragasse o que estou sentindo e ficasse em estado de alerta, pura razão. Aconteceu em junho quando vi covers do Purple, Sabbath e Led, da segunda banda em diante é como se eu estivesse dentro do vácuo. Não foi ruim, nem bom, foi uma coisa assim... Inexplicável. Coisa minha mesmo, nada a ver com as bandas, que são ótimas.

Voltando, fiquei nessa contemplação, acho que essa é a palavra. Até que eles tocaram Soul to Squeeze. Nunca foi minha favorita. Eu nem gostava de ver o videoclipe porque aqueles Coneheads me deixavam numa agonia tremenda. Mas era uma música querida de minha irmã e quando ela se mudou para o nordeste eu passei a gostar por nolstalgia ♥ 



Dia 03 de agosto eu mandei Soul to Squeeze para a Débora, o Flea num elefante (ela ama elefantes, mas detestou ver o Flea em cima de um kkkk) e um trecho da música. Era para ela, mas de alguma forma era para mim. E eu me lembrei na hora que eles tocaram ao vivo. E chorei como uma criança chora quando a mãe foi ali e deixou ela com outro adulto, e a criança acha que a mãe foi embora para sempre. Vou ser chata e vou repetir: sou ansiosa e devota do Tempo. O trecho que eu mandei para a Débora foi cantado pelo Anthony e por dezenas de milhares de brasileiros:
Where I go, I just don't know
I got to, got to, gotta take it slow
When I find my peace of mind
I'm gonna give you some of my good time
Today love smiled on me
He took away my pain, said, "Please"
"I'll let your ride be free"
"You gotta let it be, oh, yeah"

— Soul to Squeerze, RHCP

E foi isso. Sobrevivi sem ansiedade (apenas ódio de alguns outros fãs folgados, eu infelizmente devo ser um imã ou o Scar porque vivo cercada de idiotas), com alegria, um setlist que não era o ideal, mas que foi perfeito porque tinha ser como foi. Vi meus parentes distantes da Califórnia que estiveram presentes no meu ensino fundamental, na briga com o meu melhor amigo (que me fez conhecer minha melhor amiga, e hoje somos três melhores amigos — há males que vêm mesmo para o bem), no meu primeiro passeio sozinha sem adultos, que foi o dia em que minha Nininha chegou em casa. Ela tinha um mês e um dia quando comprei o By The Way por R$14,99 nas Lojas Americanas do Shopping Aricanduva, chegou numa caixa de papelão quase meia-noite. Ela tinha 15 anos e 28 dias quando ouvimos Unlimited Love o dia inteiro e ela se foi no fim da tarde (já estou chorando de novo, e qualquer música desse disco me faz chorar de amor pela minha princesa).

Golden light
Streamin' from your eyes
Give me a piece of the real thing
And I'll live with you this life

Oh, I know that it's only gold
And I come slow now for everything
The heavy wing


— The Heavy Wing, RHCP

Eu não admito ninguém vir falar de música perto de mim apenasmente em questões técnicas. Técnica não compreende Memória, e Mnemosine é a mãe de Euterpe, a musa da Música. Red Hot Chili Peppers não está mais no meu cotidiano como antigamente, mas está na memória, nas situações que vivi, na gata mais linda desse mundo. Na minha infância com minha irmã, na adolescência com amigos. Em tantos sonhos que sonhei, e no sonho que o Destino sonhou para mim, que foi conhecê-los na Cidade Maravilhosa (que é maravilhosa mesmo, apesar dos pesares que o Estado, sempre criminoso, impôs sobre ela). Rio de Janeiro é a Califórnia brasileira, só podia ser lá meu encontro com os californianos mais californianos deste mundo.

O RIO

Como eu disse, a primeira impressão foi um choque de semelhança com São Paulo. Os morros em aparência lembram meu próprio bairro (mas sei que as lógicas de cada cidade são distintas) e adjacências. Mas também teve a segunda impressão. É engraçado porque é diferente e igual ao mesmo tempo, então em menos de 24 horas eu já estava moradora da cidade e no momento presente morrendo de saudade. Fui em poucos lugares e não me interessei em ir à Lapa (quem sabe um dia, vamos parar de dizer nunca, né, Helen), mas consegui ir no meu desejo principal que aconteceu por instinto: conhecer o Mosteiro de São Bento. Se eu sou devota do Tempo, também sou do trabalho, e não vou discutir aqui neste blog como eu acho absolutamente burra a concepção contemporânea do jovem "progressista" médio sobre o trabalho (que nem é minimamente marxista, apenas muito preguiçosa), porque o jovem "progressista" médio só sabe se comunicar através de bordões de influencers e tweeteiros. Vou deixar minha teoria para belos projetos que estou tramando para o blog do Estúdio São Jerônimo. Salve o link para acompanhar ;-)

Enfim, São Bento é criador da regra beneditina e da máxima latina Ora et Labora (reza e trabalha). Padroeiro da Europa, salvou muita gente de guerras ali no século 5 etc. e tal, se organizava pelas Horas (Tempo!) e pelo trabalho cotidiano que também era uma forma de oração para Deus. E era amigo de um Corvo, que o salvou de um envenenamento. E me fez amar latim :-) Eu sou devota de São Bento também por causa da minha irmã, que quando muito criança gostava de ouvir o Jardim do Padre Marcelo na Rádio Globo, e ele rezava em Latim e eu achava isso o máximo da intelectualidade, então sei rezar em latim (não a missa da cachorra) e me acho o máximo até hoje, por mais que apenas seis versos e uma tatuagem (e uns ipsis litteris de vez em quando). Eu precisava conhecer o Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, já que o de São Paulo é o meu lugar favorito no mundo.

Ameacei um choro tão grande quanto o de Soul to Squeeze, mas acho que já não tinha mais alma para espremer o choro. O mosteiro é de 1590 e a igreja colonial de construída entre 1633 e 1798 (houve perdas por incêndio e ataques dos franceses), simples de fachada, mas toda barroca por dentro. E acho que igreja deva ser sim uma obra de arte. Entendo a simplicidade de Jesus e das igrejas de hoje, mas penso como o Andrei que a arte é uma oração, então quero entrar numa igreja para chorar lágrimas de sangue artístico como se eu fosse uma estátua do Bernini em êxtase sim! Não aceito menos.

Êxtase de Santa Teresa. Bernini, 1652. Foto: Nina-No

E eu amo canto gregoriano e órgão, que é o instrumento mais lindo da face da terra junto ao contrabaixo. Se não chorei quando entrei na igreja, chorei num momento ali da missa com o solo de órgão do senhor (não O Senhor, apenas um senhor organista), que poderia estar em qualquer banda boa de rock progressivo (não necessariamente religioso). Tive meus momentos de êxtase de Santa Teresa e fui embora realizada. O Rio é tão bonito que senti vontade de conhecer o Museu do Amanhã, estabelecimento que minha visão museológica sempre repeliu. Mas é lindo de perto. Pena que destruiu um porto histórico (mas é lindo mesmo assim).

Voltei para São Paulo cheia de grandes esperanças, meio perdida, e o bafo do mau humor paulistano já aconteceu no caminho de volta. São Paulo é triste. Punto e basta. O capitalismo nos esvaziou e todos nós somos mau encarados, preguiçosos, derretendo nas barras de metrô e ônibus feito velas se apagando. Não adianta dizer que é visão de turista sobre o Rio: paulistano é, sempre foi, e infelizmente penso que sempre será, engolido pela atrocaducapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivora — Cidade

Senhor cidadão
Me diga, por quê
Me diga por quê
Você anda tão triste?
Tão triste
Não pode ter nenhum amigo
Senhor cidadão
Na briga eterna do teu mundo
Senhor cidadão
Tem que ferir ou ser ferido
Senhor cidadão
O cidadão, que vida amarga
Que vida amarga.

— Senhor Cidadão, Tom Zé.

Eis aqui meu brevíssimo relato de viagem. Quero outras. Quero uma motocicleta e rodar pelas estradas da vida e nunca mais voltar. Quem sabe um dia?

Easy Rider (Sem Destino). Dennis Hopper, 1969.
Yeah, darlin' gonna make it happen
Take the world in a love embrace
Fire all of your guns at once
And explode into space

— Born to be Wild, Steppenwolf.

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© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo