11.1.21

O Tempo do artesão e a arte

Hoje houve um misto de acontecimentos estranhos, uns banais outros não, que me deixaram meio "sei lá". E é "sei lá" mesmo, porque é um misto de desânimo com raiva, medo, insatisfação, preguiça, desistência. O mais importante dos assuntos eu não vou comentar, porque é pessoal demais. Mas os outros têm certa conexão entre si, e como são mais mentais, é fácil compreender minha angústia.

Sempre fui muito acelerada em tudo, principalmente para não levar bronca por ser "bunda-mole". Esse foi um apelido que ouvi pela primeira vez no parquinho do pré, quando tinha quatro anos, e depois ouvi muito do meu pai, que guardou bem esse momento de bullying num escorregador metálico do Itaim Bibi para cometer outros depois. Por causa dele mesmo eu vivia correndo, tanto para me livrar de broncas, como de obrigações. Sempre fiz tudo muito rápido para "ter tempo". Mas, como o Tempo é pai de todas as coisas, afinal é ele o Cronos, ele tem todo o poder de não fazer os nossos gostos, e na verdade é ele que nos têm, e quanto mais corremos atrás dele, mas ele corre conosco. Já percebeu como temos mais tempo quando não corremos contra o tempo?

Hoje me deparei com o Tempo, como todos os dias. Mas de um modo muito mais nocivo, que na verdade é uma autonegação a partir de deduções - ou possíveis deduções - alheias. Primeiro, vi uma série de stories que analisei muito criticamente. Uma ex-colega de curso reclamava do atendimento online ao consumidor em tempos atuais, dizendo que tudo demorava muito, que respondiam 2, 3 dias depois, que se faziam não sei quantos boletos e que, mesmo que o planner era divulgado como "personalizável", "não se muda o miolo", e que é dever do vendedor dizer que a personalização é apenas da capa. Quando assisti pensei: quanto exagero. Mas pensei também: vou usar essa opinião como exemplo na hora de divulgar meus cadernos e atender meus clientes. Há um ano sou encadernadora no Estúdio São Jerônimo, como diz a Luma sobre si, sou uma EUpreendedora. Então: corto, costuro, dobro, embalo, entrego, vendo, calculo, pago, recebo, divulgo, crio, mando, procrastino, obedeço, tudo sozinha.

Curiosamente, estou num processo de compra e venda bem mecânico. Não tenho loja ainda, e não sei se o sistema "loja" combina com meu fazer, que é manual e depende ainda dos meus humores. Nem quero terceirizar ou me "industrializar", porque cadernos em larga escala a Tilibra já tem. Mas cadernos Estúdio São Jerônimo só podem sair das minhas mãos, senão não há sentido em existirem. E talvez isso faça parte da missão desse projeto. Mas, voltando ao processo de compra e venda atual. É uma conversa. E ela demora dias: a pessoa pergunta; eu, quando vejo, respondo com informações e possibilidades; ela, quando vê, responde com preferências; eu respondo com confirmações e pedido de dados para concluir o pedido, para ter certeza de que comprar aquele material não será um prejuízo, e espero a pessoa responder, a matéria-prima chegar, para poder começar o corte, dobra, costura, cola, embala, entrega. Só nessa pré-venda, eu demoro 2, 3 dias. A pessoa não parece estar incomodada, e eu espero que não esteja, mas infelizmente o grupo de stories me desanimou e me fez questionar meus métodos.

Mas esses métodos são tudo o que de certa forma eu sonho em realizar: dar marcha-ré, ou um pisão no freio, num mundo que corre a 200km/h, enquanto eu quero ir a 10km/h ou menos, pensando que o carro é uma máquina, e meu trabalho é todo com meu corpo e ferramentas manuais. Quando falo no ferreiro construindo uma espada numa cidadela medieval, não estou de brincadeira. Quero mesmo que meu estúdio seja um galpão cinza com cheiro de produtos químicos, graxa e fumaça, que o martelo bata onde tem que bater, que o aprendiz - que geralmente é apressado - venha afoito fazer uma pergunta e eu, o velho sujo de graxa, batendo na lâmina da espada com uma feição severa, responda impaciente alguma sabedoria que faça o menino primeiro se frustrar, e depois reconhecer o conselho. Hefesto é um bom personagem para essa cena, é o deus da metalurgia e dos vulcões.

Eu já sou severa, e isso gera problemas maternais. Mas gosto de ser severa, e sei que minha severidade é muito líquida. Penso agora que seja uma liquidez de lava quente, de ferro derretido.

Voltando ao trabalho e à forja, estive pesquisando no youtube como funcionam fornos de cerâmica, pois quero muito voltar a mexer com argila, mas com esse resultado final queimado, e não quero depender de fornos alheios, de oficinas ou SESCs. Achei um vídeo interessante sobre, mas a menina veio e me soltou: 

eu não quero desestimular ninguém a fazer cerâmica; eu só quero que vocês entendam o valor que isso tem. Fazer cerâmica às vezes parece um artesanato, como um hobby qualquer, mas a gente está trabalhando com uma coisa que é muito técnica.

Essa mocinha não parece ser o tipo de pessoa odiosa que adoro reclamar sempre, os famosos blasés hipsters de classe média, que falam com uma voz de gripe e cara de tédio. Então penso que ela falou na inocência sobre uma ideia já bem enfincada no solo do fazer artístico e artesanal.

Julianne Moore, em The Big Lebowski (Irmãos Coen, 1998) é o retrato perfeito de artistas da "cena". Mas o personagem é ótimo

Mas existem essas pessoas, as que realmente se acham "alguém" por serem artistas, e que artesãos não são de nada. Podem não pensar assim, de forma tão crua, mas fazem pior: agem assim, de forma tão crua. Por que o crochet é brega para um meme onde mostram a foto de um botijão, mas é uma super sensível obra-de-arte, quando algo disforme e inútil, apenas com um nome assinado e pendurado numa parede de drywall pintada com uma legenda no canto inferior direito? Não que eu goste de capas de botijão de crochet, mas também não gosto que técnicas como essa só sejam transformadas em "arte" se nas mãos de um branco de classe média que inventa umas frases difíceis para criar um propósito, mas que leio como um grande vazio cheio de palavras comuns ao meio, como "experiência", "fruição", "explora", "resistência", etc. Inclusive, li um texto muito bom que mostra, academicamente, que tem a ver sim com a luta de classes e racismo essa diferenciação.

Reclamei em stories também, e comentei um caso pessoal. Mamãe aprendeu os pontos básicos de crochet com uma vizinha cega. Minha amiga Carole respondeu, dizendo que sua tia-avó também faz tapetes com retalhos sem enxergar. Isso seria um artesanato, um hobbie qualquer, desprovido de técnica? Lembrei também de Ariano Suassuna. Num vídeo famoso dele, que adoro rever e compartilhar, ele mostra duas casas populares, uma africana e uma brasileira. A segunda, nordestina, é bem comum nas cidades que ainda cultivam particularidades históricas de criação - diferente das capitais, que são como filiais de MC Donalds em formato de metrópole. Ele disse que um crítico de arte (profissional que também critiquei nos meus stories) comentou em sua resenha, que esses construtores certamente devem ter tido influência de Volpi e Mondrian. Ele comenta que isso é um preconceito - precisamos mesmo de referências externas e tão distantes para sermos capazes de fazer arte? Amo Mondrian, mas realmente, uma arte popular somente é válida se acorrentada a uma arte universal, ou pior, elitista? - e faz a piada: vá dizer isso a um trabalhador que ele vai achar que é pornografia "'você recebeu alguma referência de Mondrian?' - o camarada 'o quê?'".

Outra amiga, enquanto eu escrevia esse texto, me disse relatos pessoais sobre o cordel. O meu tão amado cordel. Alguém disse a ela que cordel é associado à pobreza. Não tão escancaradamente, lembro de um professor de workshop, enquanto contava a história da gravura, pular todo o envolvimento artesanal nordestino porque era "outra parte" da história. Outra pessoa do meu meio de amizades comentou como só "vale" uma gravura, se em edição limitada. Numa exposição, falei para gravuristas famosos - que muito se importam se um Samico vale 25, 100 mil ou mais, em vez de admirar a obra em si - que acho que a arte está mais no processo que na exposição. E cada dia acho mais. Citei até a música do Raulzito "o caminho da vida é a morte". Expor o trabalho é excelente. O contato com o público. No caso dos meus cadernos, que considero arte, porque artesanais, a melhor parte é saber que a pessoa não só gostou, como os usa. Mas comentei em terapia uma vez:

talvez a arte pra mim seja conjugada apenas no tempo presente: antes é um ensaio, um anseio; depois um testemunho, um testamento.

Então, o fazer artístico, é o processo louco de estar fazendo arte. Depois é arteFATO, arteFEITO, para usar grafias //arTísticas// conceiTuAIs. É um testemunho de nossas ações que inspiram alguém a ter um sentimento, uma ideia, uma atitude, nem que seja para falar muito mal em seus blogspot.coms. 

Demoro muito para concluir as coisas, mesmo sendo a eterna menina apressada do começo desse texto. Sou muito rápida sendo lenta. E só descobri agora, em desespero, me achando a maior procrastinadora do universo. Pesquisando Gilvan Samico e João Cabral de Melo Neto, entendi o que é um processo. Muitos artistas demoram anos para produzir alguma coisa. Porque isso envolve pensar, ter uma ideia e anotar, esquecer, viver a vida fazendo outras coisas nada a ver, comprar material, ter humor para botar a mão na massa (no meu caso, enfrentar o medo da matéria também), produzir, remexer, renegar (o manuscrito de Carrie foi para o lixo antes de ir para uma editora, deus abençoe a esposa do Stephen King), aceitar, expôr, vender, etc. Esse blog e o Querido Clássico mesmo são exemplos do meu passo de tartaruga. Demoro para pular nesse mar de emoções, mas quando pulo, é para nadar no mais profundo oceano e quase me esquecer de voltar à margem. Eu não consigo, e talvez não possa, ser fugaz. Não posso comer o mundo inteiro de uma vez, como bem me sussurrou uma velha sábia que representa o tempo.

Mas, como luto contra o capital e toda uma lógica internacional de superprodução, tem uma parte de mim que é cópia desse arquétipo Fausto-fomentador que me cobra diariamente por atitudes, ações, 8 horas cortando e dobrando papel, contatando clientes and making money. Num mundo onde Time is money, Tempo é vida ou morte. E correr contra o tempo é com certeza a morte do aproveitar o tempo.

Sou um misto de lebre e tartaruga, sendo lebre quando estou certa de que consigo, tanto que não faço o que é prioritário e me distraio com outras coisas, mas quando faço, faço tão lenta e persistentemente, que acabo conseguindo materializar as ideias, mas sempre com muito esforço. Pensando agora, talvez seja só questão de aceitar ser tão ambígua, porque as tantas referências costuradas em cada texto são justamente o fruto de tantos atalhos e distrações.

Tenho uma monografia para entregar em 20 dias, e ela parece um conjunto de ossadas bagunçadas enterradas no meu quintal. Eu sou o cão que caminha afoito ao redor da cova, pula e retrocede, avança, ameaça, mas não pega o osso de uma vez. Ou, na melhor das hipóteses, essa ossada é de alguém muito antigo, eu sou a arqueóloga muito precisa e metódica que limpa cada centímetro com uma escovinha de dentes macia. Na pior das hipóteses, eu sou o Barba Azul, e a ossada-monográfica são todas as mulheres que matei e tranquei num quarto do meu castelo. É. Psicologicamente com certeza sou o Barba-Azul. Eu e minha mania de gostar de Petruccios.

Gustave Doré - Barbe Bleue (Bluebeard), 1862

Ninguém está efetivamente me cobrando prazos, me apressando ou nada do tipo. Na verdade uma pessoa está: eu. E era a única que deveria estar me motivando a respeitar meu próprio ritmo. Eu sei o que eu quero, sei que posso e sei que consigo. Mas ainda estou aprendendo a não olhar pela janela do carro e me confundir com a velocidade alheia nessa corrida maluca. Talvez eu ande mais na contramão, né? O texto de hoje é um cavalo doido, cavalo de pau. 

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Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo