13.12.20

18. A Small victory

Amigos! Romanos! Conterrâneos! Emprestem-me seus ouvidos - dizia Michael Kyle no episódio do Homem do ano. Anos depois, no tinyletter, descobri que era uma alusão ao discurso de Julius Cesar, de William Shakespeare.

Por que digo isso? Senta, que lá vem história - mesmo, por favor. Essa bomba eu não aguento nem em mim mesma.


Eu tinha pensado, anos atrás - porque consegui transformar 30 dias em 3 anos de música -, em guardar esse dia para Under the bridge, do Red Hot Chili Peppers. Mas, man, a cidade que eu vivo definitivamente não é a cidade dos anjos. Nem dos caídos, porque tenho apreço pelo portador da luz. São Paulo para mim é completamente o oposto do que é Los Angeles para Anthony Kiedis.

Então, fuçando os videoclipes de Faith no more, uma banda que se parece, mas não é RHCP (eu diria que são luz e sombra) descobri que havia música da banda do ano em que nasci. Reservei um momento de minha existência para criar o gif acima, que é um Mike Patton extremamente - como sempre - sensual, num movimento que eu amo, e que só vi em Interstellar - pois muito específico de quando atinjo o êxtase musical, como um orgasmo, e não pelo que vejo, mas pelo movimento do som, como se eu fosse capaz mesmo de visualizar as ondas sonoras; sem falar nessa face meio caveiruda nos segundos finais, o que tem tudo a ver, por mais que não pareça nessa teia que estou tecendo.

Mike Patton foi meu casamento nesse mês de outubro. Nunca comemorei tão bem um mês das bruxas como em 2020. E olha que 31 de outubros têm me sido especiais desde pelo menos 2017. Foi meu casamento porque estão sendo paridos vários textos sobre Fantômas, um projeto que ele tem com outros incríveis metaleiros. Primeiro, no Querido Clássico, depois, no Projeto Átropos, ainda em pré-produção. Esse processo foi realmente um processo, e em diversas camadas - feito cebola infinita, uma das últimas adjetivações de mim mesma - eu me deparei comigo em Patton.

São coisas que nem elaborei direito, mas eu sempre fui conhecida pelo tanto de coisas que sei e costuro. É meu jeitinho. Só que é algo que contém tantas coisas que eu me perco e não entendo muito bem. Começou com desabafos nessa página em 2008, numa época que estava apaixonada por um professor da minha escola e ouvia muito John Frusciante. O John viaja. Tem umas falas dele sobre 4ª dimensão, vozes, física quântica. Aprendi a gostar de rock progressivo com ele. E me identifiquei com essa coisa pisciana meio enevoada e mística. Então vinha aqui e escrevia umas coisas aleatórias, que às vezes não entendo mais, ou vinha xingar alguém como sempre. Escrever era algo que eu simplesmente fazia. É algo que aprendi a fazer a partir dos três anos e nunca mais deixei. Papai brigava comigo de tanto que eu vivia com caneta e papel na mão. Então, por ser algo natural de mim, achei que era natural de todo mundo. Aí quando recebo elogios ou coisas do tipo eu faço cara feia num sentido de "oxe, não estou fazendo mais que minha obrigação".

Elio Petri's Investigation of a citizen above suspicion, 1970



Mas eu comecei a perceber, depois que fiquei tagarela com certos amigos e mando áudios que são palestras para Carol, que eu jorro demais, misericórdia. E nesse isolamento, estou comigo mesma no meu quarto, o que é viver de novo meus 19 anos. Não acho ruim ficar isolada, porque sempre fui um castor que se represa entre troncos bem escolhidos. Ruim é a doença e a mortandade, a política, a economia mundial. Enfim.

Nesse meu represamento, onde eu basicamente sou um Sean Connery no monastério de O Nome da rosa (ele ainda estava vivo quando rascunhei essa parte 😔), eu montei o Estúdio São Jerônimo (ainda antes da pandemia, enquanto estive na Paraíba), que é uma extensão da minha cabeça com instrumentos de artesã. É meu estado de materialização do universo que vive dentro de mim.

Cada um de nós é um universo, obviamente. Todo mundo tem de tudo dentro de si. Mas acho que pela primeira vez eu me incomodei com o peso que eu tenho pra mim mesma. Porque crio acordada, tenho ideias a cada minuto, escrevo, desenho, pinto e bordo - literalmente. E ainda tenho tempo de sonhar de noite. E são sonhos elaboradíssimos, às vezes três, cinco por noite. E ver Mike Patton ter TANTO trabalho produzido me fez me ver de fora pra dentro. Foi como se David Gilmour realizasse seu sonho de poder ouvir The Dark Side of the Moon pela primeira vez na vida, como se não o tivesse produzido, surpresa que ele jamais teve. Porque ver que Patton, além de Faith no More, canta solo, dubla personagens, fala (e canta) português, espanhol, italiano, se uniu às crianças de Heliópolis no SWU de 2011 - e eu dei aula para crianças de Heliópolis entre 2016 e 2019, o que me aproxima ainda mais dele -, criou Fantômas, Tomahawk, Mr. Bungle (pré-FNM), tētēma, fez parcerias, tem uma gravadora, a Ipecac records, e cada título de projeto tem um significado histórico (Fantômas é um criminoso de pulp fiction francesa criado em 1911; Tomahawk um machado indígena norte-americano, Mr. Bungle um personagem que eu definitivamente já pensei em misturar com Pink Floyd em cinco minutos, e Ipecac uma planta brasileira que induz o vômito. Fora as coisas que não cataloguei ainda.

Aí encontrei uma entrevista dele como vocalista do Fantômas - eu fiquei um mês pesquisando esse negócio -, onde ele explica o processo artístico que traduz tão bem esse caos mental que eu vivo. E ainda alinha duas coisas que amo que é o bizarro e o erótico, uma sensualidade pirracenta, mas muito elegante e suja, um misto de Steve Stifler com Paul Finch, melhores antagonistas de um besteirol americano.

Whenever I make a record I kind of put it in a box first. It's gonna sound kind of like this, or like that, or like that - and that's the way I can focus and actually do it. Otherwise... “oh that's cool and that's cool” - and there's all these ideas that are floating around in the air, unless you put them in a... in a bubble and paint them a certain color and put them in a... you know, a context, they don't make sense. So, yeah I do that pretty much every time I make a record.

Sempre que faço um disco, eu meio que o coloco numa caixa antes. Vai soar desse, ou daquele, ou de outro jeito... e é assim que consigo focar e fazê-lo. Senão... "ah, isso é legal, e isso é legal".... e há todas essas ideias flutuando no ar, a menos que você as coloque num balão e lhes dê alguma cor e as ponha num contexto, elas não fazem sentido. Então, sim, faço muito isso toda vez que gravo um disco.

Por mais que eu escreva - e é muito, mas nunca o bastante -, é muito difícil materializar minhas ideias. Porque eu as alimento e recrio na mente, e com a terapia descobri que, por mais prolixa e boa de discurso que seja dentro de minha cabeça, aquilo não faz muito sentido até sair pra fora do corpo e tomar forma, até me encarar. Eu me enxergo no outro. Em pessoa e criação. Precisa existir fora de mim, para eu aceitar que existe dentro de mim. Não, já existe tanto dentro de mim, que precisa existir fora, para eu poder tocar, mexer, mostrar. Mostrar, é isso! Vira e mexe digo aqui que tudo o que faço é para poder traduzir as maravilhas que enxergo com meus olhos. É a minha versão do mundo. E ela precisa ser considerada.

Conheci um rapaz essa semana, que acredito que vá ser amigo, que, tentando entender o porquê de eu me importar tanto com pedidos de namoro, tanto quanto a atividade namorar (namorei, não fui pedida em namoro, apenas aconteceu e eu vivi e deram nome à coisa por maioria de votos), soltou algo como "você precisa que estabeleçam um nome para a coisa que você está vivendo, para se tornar um compromisso consigo mesma". Dias depois eu pensei que não é somente isso, mas também é um contrato, que precisa ser estabelecido com garantias. Dar nome aos bois é tornar real o que já é subjetivo, é se importar com as minhas decisões e não passar por cima delas, é considerar meus quereres e me pedir permissão, sem decidir por mim. Parece que foge um pouco do Patton, mas não: meu ser onírico precisa de materialização. Minhas águas precisam de uma margem de segurança. Afinal, água possui um formato porque se adapta ao espaço que a comporta. Sem isso, é oceano, é maremoto, é chuva, escorre pelos dedos.

 For me it's all about parameters, putting things in little specific places, storing them on the shelf, and going to them when you need them.

Pra mim é tudo sobre parâmetros, colocar as coisas em pequenos lugares específicos, guardando-as na estante, e indo até elas quando necessário.

Materializar é dar limites. Um rosto, um corpo, uma roupa. Talvez a verdade nua e crua que eu desesperadamente busco ainda seja uma coisa tão disforme que a única possibilidade de ela acontecer é através das máscaras mesmo. Das faces todas do lobo da estepe. Afinal, para nós historiadores, a verdade absoluta não existe, o que existe são fragmentos de verdades individuais, coloridas ou não, filtradas de dentro de cada corpo para fora de diversas formas. A verdade é uma ideia. Ideias não possuem rosto, se adaptam a rostos. E, sobre isso de ideia, eu tento compreender um quebra-cabeças que quebrou - mais uma vez - meu coração nesses últimos dias, quando descobri que alguém que eu pensava conhecer simplesmente não existe. E o que mais me dói não é - mas também é, e é muito - a mentira criada. É pensar que tudo o que parecia real, material, que tinha corpo, forma, olhar, jamais existiu. É um retrocesso, um oposto do ideia-corpo. É descobrir o corpo como ideia. É tão complexo que não consigo explicar aqui, mas vou tentar pensar em como dizer.

James McTeigue's V for vendetta, 2005

Só que foi bom eu chegar a esse nó, porque esse mesmo novo amigo disse que eu consigo "tornar sólido coisas abstratas" e que sou sinestésica. Sinestesia é uma palavra que me definem desde 3 de setembro de 2011 e sim, eu sou assustadoramente boa com datas. Sou quase uma Carrie, e talvez por isso goste tanto de Stephen King. Mas voltando à matéria. É estranho pensar nisso no meio de uma sociedade cada vez mais fluida e digital. Sinto que a mente e a vida virtual serão uma máxima das próximas décadas ou séculos. E eu vou em direção contrária a isso.

Um velho mundo, né? Talvez a raiz desse nome esteja no fato de eu amar tudo aquilo que já não é. Sou saudosa de tempos e lugares em que não vivi. O estranho me apetece. Astrologicamente tudo isso faz sentido no eixo ASC-DC Peixes-Virgem, onde o planeta que rege um está espremido na pequena casa do outro, o que faz eu olhar para mim mesma do lado de fora: um peixe que tem como seu rei, o enorme Júpiter, na casa oposta, do minúsculo Mercúrio. Vamos imaginar que seja o peixe pescando o homem. É isso que eu sou. Talvez um astrólogo leia isso e diga "hã?", assim como quem não acredita nos astros provavelmente vai dizer: "hã?". Um dia eu desenho. Nem Clarice entendeu o que quis dizer em O Ovo e a galinha.

O que quero dizer é que o quê? Que não é o que não pode ser que não é. Se estão todos indo do ponto A para o ponto B, eu vou de volta para o ponto A, e vice-versa. Ou, posso até ir junto para o ponto B, mas de costas, olhando em direção ao ponto A. Porque eu não gosto de unanimidade, toda ela é burra e eu acho isso uma máxima verdadeira, mesmo que verdade completa também seria uma unanimidade, portanto...

Um velho mundo é respeitar tradições de modo que se crie um elo entre passado e presente. Eu acho que minha missão na vida não é apenas criar, mas manter. Criar a partir da manutenção. Na vida nada se cria, por mais que a juventude seja prepotente demais para acreditar-se inovadora. Não seríamos hoje sem os que foram ontem. Eu preciso olhar para o passado porque é ele quem responde meu presente. Não só para eu entender onde estou e o que eu vim fazer aqui, mas para poder aguentar esse fardo que é viver entre vocês. Nada pessoal. Só com alguns fellas. Listando alguns dos meus trabalhos atuais, eles são de fato elos de uma corrente, ou retalhos de uma colcha, que se puxam, que se completam. Um quebra-cabeças de referências.

O Estúdio São Jerônimo é uma criação de quase um ano que ainda não acredito que eu criei. Foi a coisa mais despretensiosa, audaciosa e, ao mesmo tempo, ambiciosa de toda a minha indústria vital. É o meu quarto. E o que crio com papéis. Eu escrevo e desenho, né? E comecei a criar o objeto onde escrita e desenho tomam forma: o caderno. A pandemia me desacelerou e eu não pude ainda chegar ao ponto máximo dessa locomotiva em questão econômica, mas eu sei que é algo bastante sólido e que vai durar. Porque eu vou fazer com que dure: esse estúdio sou eu até os ossos, até o talo. E é um pai mais jovem de Um Velho Mundo.

Um Velho Mundo que sou eu, há tantos anos. Talvez o Saturno vencido pelo Júpiter que é o estúdio. A era de ouro de minha escrita. O titã que pariu deuses. Se eu não passasse a ver a minha arte como arte, e, principalmente, minha escrita como arte, eu não estaria aqui hoje. Devo muito a este blog e a todos os que me leem, do primeiro ao último, do conhecido ao anônimo. Gracias. A menos que haja algum inimigo aqui me lendo: não devo nada a você, você que se foda pra lá (é melhor prevenir, né?)

John Melhuish Strudwick - A Golden thread, 1885

Átropos. Esse daqui eu não vejo com corpo ainda. Apenas as veias. O que é engraçado, porque ele falará de Delìrivm còrdia, do Fantômas, que é uma música de mais de uma hora que representa uma cirurgia num corpo humano. E Átropos, que é a moira que corta o fio da vida (a parca Morta), aquela costureira que dá o ponto final e estabelece o formato da costura. A mais materializadora, talvez, pois está em suas mãos a ponta oposta àquela que a Clotho (Nona) começou a fiar. Clotho, Laquesis e Atropos são três moiras, na mitologia grega, responsáveis pelo fio da vida. Clotho (Nona) inicia o fiar, representando o nascimento, Laquesis (Décima) mantém a fiação, representando o período em que se vive, e Atropos (Morta) estabelece o ponto final e corta o fio. Num processo artístico é o processo de criação, do começo ao fim.

Querido clássico é um mundo vizinho que com muito gosto fui chamada por Mia para fazer parte. E ele tem uma missão muito bonita e irmã de todos os meus trabalhos: mostrar o clássico, o passado, com gosto palatável para as pessoas. Mostrar que nem tudo é o agora ou o fácil. O antigo e o difícil valem a pena, porque a alma não é pequena. Minha solidificação do abstrato, é a margem que transforma água em rio. Não para ela ser represada, mas para correr e desembocar lá no fim do mundo. É dar sentido à correnteza de pensamentos e sentimentos. Ligar o nome à pessoa. Juntar o lé com o cré. Eu gosto tanto de entender (e isso nem sempre é uma dádiva), que preciso transformar o entendimento em algo saboroso para os outros. Quero viciar as pessoas em ter pulga atrás da orelha. Porque eu sou a mosca, meu irmão.

I just wanted, you know... basically take a lot of cliches and little things that I learned playing in noise bands when I was a kid and, and... and organize in a way that makes people think a little bit, so if... if it does stop you in your tracks or, if you're forced to look at it and... think a little bit, then yeah, I think that's... that's about the best we could do.

Eu só queria, basicamente, pegar um monte de clichês e pequenas coisas que aprendi a tocar em bandas barulhentas quando eu era jovem e organizar de um modo que faça as pessoas pensarem um pouco, então se isso te faz parar no teu caminho, ou se você é forçado a olhar e pensar um pouco, então, sim, penso que é o melhor que podemos fazer.


18. Uma música do ano em que você nasceu
If I speak at one constant volume
At one constant pitch
At one constant rhythm
Right into your ear
You still won't hear

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© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo