3.9.19

Whiplash, FNM* e a mitologia: Dédalo, Talo e Ícaro

Esse texto contém muitos spoilers do filme Whiplash.
Man was born to love
Though often he has sought
Like Icarus, to fly too high.
And far too lonely than he ought
To kiss the sun of east and west
And hold the world at his behest
To hold the terrible power
To whom only gods are blessed
But me, I am just a man!
Peter Paul Rubens - A queda de Ícaro, 1636.
Na mitologia, Dédalo foi um ferreiro instruído no ofício diretamente pela deusa Atena, portanto um excelente ferreiro. Ele tinha um sobrinho, chamado Talo, que era um prodígio: já aos doze anos praticava o ofício, e tinha ideias maravilhosas; uma delas foi a criação do serrote, a partir de uma espinha de serpente (ou peixe). Essa prodigalidade do menino causou inveja em Dédalo, que o matou.

Fugindo da punição, Dédalo chega à ilha de Creta, dominada pelo Rei Minos. Por ali viveu anos em trabalho e boas recompensas, até que Minos descobriu seu crime e o prendeu, junto ao filho Ícaro, no labirindo construído para conter a fera Minotauro.

Mais uma vez em fuga, Dédalo constrói dois pares de asas, para si e para o filho, com penas de aves trançadas e coladas com cera de abelha. Na hora de partir, adverte o rapaz: não voe tão próximo do mar, para não molhar e tornar pesadas suas asas; nem voe tão próximo do sol, para não derreter a cera que prende as penas.

Ícaro, ao alçar voo, se deslumbrou com a altitude e possivelmente com o sentimento de liberdade de estar em pleno céu, acima do labirinto, das cidades e das ilhas gregas. Então desobedeceu Dédalo, e voou perto demais do sol. Seu pai estava certo, e a cera derreteu: Ícaro caiu no mar e morreu afogado.¹

Ao buscar a história, eu pretendia falar apenas de Ícaro. Mas então entendi sua ligação com Dédalo, que teve uma aventura anterior.

Ícaro: apenas um homem

Deu que ultimamente Just a man tem sido um afago e um tapa na cara por aqui. E coincidiu com o filme que me foi indicado, Whiplash. Nunca dei tanta bola para essa produção tão importante que foi comentadíssima em 2014 e eu nem acredito que esse filme tão novo foi lançado há cinco anos.

Assistindo Whiplash, já senti que faria par com o professor, não importa toda a questão dele e seu perfeccionismo que excede limites de convivência com seus aprendizes. Algo em mim, e Freud explica, flerta com o autoritarismo, e eu sou absolutamente perfeccionista, de um modo que me travo porque acho que devo estudar muito para já fazer a coisa completa e irreparável. Mas não é assim que funciona.

Em Whiplash, o professor comenta com o aluno (eu não decoro nomes de personagens) que duas palavras são algo que não consta em seu dicionário, não lembro se ele comenta que são um "crime", mas algo pesado assim. Essas duas palavras são good job (bom trabalho). Quem ouve essas duas palavras e recebe um tapinha nas costas, segundo ele, fica satisfeito, se conforta, e não pretende ir mais além, já que o trabalho foi "bem feito". Então, tudo fica ali na média.

Whiplash, 2014.
O garoto, o aluno. Eis a questão. Desde o início eu o assisti com a sobrancelha direita levantada, em alerta. Primeiro, um rapaz dedicado também buscando a perfeição. Depois, um presunçoso com sorriso de canto de boca se achando o próprio Talo, o menino-prodígio de 19 anos numa banda profissional. Ou, o próprio Ícaro, voando perto demais do sol. Nisso, o aluno se acha melhor que todos os outros bateristas, se sente querido pelo Professor com P maiúsculo, termina um namoro que poderia dar certo, porque sua meta de vida é apenas esta: ser o melhor baterista, como seu ídolo Fulano de Tal² (assistam o filme e ouçam essas músicas, são maravilhosas).

A partir do meio do filme os dois se lascam. O aluno, porque diz sobre outro aluno tomar seu lugar "você vai aceitar essa merda na sua banda?" (muito eu em diversos momentos), se machuca para não perder a hora e tem uma crise nervosa (eu também, socorro). O professor, porque o aluno o denuncia por assédio.

No fim do filme parece que o jogo vira (não é mesmo?), e os dois se desafiam no palco num solo insano que vale muito a pena assistir.

Enfim, subestimei um filme que tem reverberado em mim há dias. Sou a personificação do desta água não beberei. Porque nesta água eu me afogo.

Já não gostei do aprendiz sabendo que ele representava a mim. No meu emprego. Na minha vida. Na minha inteligência. Presunção é uma coisa que muitos jovens têm, por não compreenderem os mais velhos, mesmo que seja fato que o jovem venha revolucionar e o velho conservar. Marx já dizia.

Agora que cheguei aos 27 anos, nesse limbo e nesse clube dos que nem sempre sobrevivem, tenho revisto minha vida e bodeado tanto da juventude, como de mim mesma. Então estou do outro lado do prisma, vendo as coisas por um ângulo inédito.

O jovem, qualquer jovem, generalizando sem vergonha mesmo, e eu, temos essa presunção de saber. Eu sei, dizemos, porque, sim, tecnicamente sabemos. O cérebro juntou o lé com o cré e produziu um resultado. Mas saber é diferente de perceber. Perceber é aquele Eureka que temos muito de vez em quando. Que, quando temos, os velhos sorriem com cara de sábios, uma mistura de eu avisei, com eu estava esperando esse momento, aproveite.

O aluno tomar no cu, e o professor ter colaborado para isso, mostra essa baixada de bola e essa crista sendo murcha pela mão do mais sábio. Mas, o aluno desafiar o professor, e deixá-lo boquiaberto com seu potencial e seu esforço, mostram que o aprendizado não só houve, como foi superado.

Então o aluno seria tanto Ícaro, o que desobedece, se deslumbra, se acha, cai e morre; como Talo, o que cria, se aperfeiçoa e se supera.

O professor poderia ser Dédalo. Em sua relação com os alunos, inclusive o que é dado como morto, posso compará-lo com o excelente ferreiro. Não pela inveja do sobrinho, mas por causar a morte de jovens por achar que as coisas devem ser como ele imagina que sejam, por querer ter o poder sobre o ofício.

Em sua relação com esse outro aluno também, como pai de Ícaro que o adverte que, ao voar alto demais, a queda é grande (ouvi mainha falando isso).

Também sou como o professor. Nessa minha busca pela perfeição, não só vou desenfreada no limiar entre a liderança e o autoritarismo, o que causa certas grosserias e disputas de poder no trabalho (que ridícula, KKKKKK), como me machuco por me travar e não pôr pra fora o que eu tenho de especial.

Esse texto, por exemplo. Em outros tempos, buscaria artigos e mais artigos sobre o mito, leria algo sobre o filme, buscaria imagens, colagens e o caralho a quatro. Mas acordei sem paciência para firulas, só querendo vomitar o que está aqui dentro do jeito que dá e o futuro a Deus pertence.

Mas, principalmente, sou Ícaro. Deslumbrada com tudo o que tenho na minha cabeça, nas minhas mãos, no meu coração, nos meus ouvidos, nos meus olhos, na minha pele, no meu peito, na minha alma, no meu espírito, no meu ser, queimei minhas asas e caí no mais profundo do oceano, e tenho me debatido esperando manter o equilíbrio e conseguir nadar. Porque agora eu sei nadar, esse medo já está quase extinto.

O texto, a constatação, o clímax do filme, o momento em que estou vivendo e a mitologia me gritam o seguinte: todos são momentos em que se necessita de reconhecimento de si, humildade e trabalho. Ora et labora. Senão, fodeu.


* FNM é a sigla para a banda Faith no More.
1. GRAVES, Robert. Dédalo e Talo. In: Os Mitos gregos. Editora Nova Fronteira. p. 535.
2. Não fui buscar quem era Fulano de Tal nem o nome dos personagens, pois se o fizesse esse texto não sairia nunca, nessa busca perfeccionista que eu tenho alimentado por 27 anos.

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Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo