7.11.19

Tudo em ruínas

O salão em seus melhores dias
Desde a universidade eu tenho uma teoria de que entro num lugar ou situação para ver sua destruição acontecer, paulatinamente. Me veio isso na cabeça a partir do momento em que o bar do Márcio se transformou num salão de eventos, e depois numa academia fitness.

Otimistas diriam que é só o mundo se atualizando. Saudosistas - ou pessimistas, dependendo do grau -, têm a mesma visão que eu. Saturnina. Digna do arcano A Torre.

O bar do Márcio era muito importante para mim. Eu era calada na universidade, minha amiga Bia não descia para comer. Eu ia sozinha e ficava bem longe dos colegas de turma, dos professores, ou mesmo de qualquer outra pessoa. Sentava no balcão do bar e pedia: um café com leite e um pão na chapa, por favor. De segunda a sexta-feira. Às 9 horas. Só faltava bater ponto. Um Rudi Angermeier. Em menos de um mês, Márcio nem me ouvia mais. Me avistava no meio dos alunos de outros cursos - todos de humanas, esse era o bar dos renegados -, e já dizia "já vai, amiguinha", ou algo do tipo. Decorou. Me senti importante e querida, tenho mania de me afeiçoar a garçons. Bares eu já amo de graça desde pequena.

Mas aí a Roda da fortuna girou e a Torre se despedaçou. Não sei o que foi feito de Márcio. Foi lá meu primeiro dia do meu primeiro namoro. Foi lá que meu amigo Henrique me chamou de Bukowskiana, porque eu detesto me relacionar com pessoas. Foi lá que meu professor Jean me abordou enquanto eu ouvia Shine on you crazy diamond. Foi lá que, quebrando minha própria regra, pedi ao Márcio, às 9 da manhã de uma segunda-feira, uma dose de Rum. Dividi com o Samir e passei a aula do professor Bas'Ilele escrevendo tudo torto.

Essa foi minha primeira ruína significativa.

A Universidade Camilo Castelo Branco era referência e tradicional na Zona Leste de São Paulo. Situada no caminho entre São Miguel Paulista e São Mateus, ali por Itaquera, ela foi fundada em 1968 e sempre foi muito bem elogiada nos cursos de Pedagogia e principalmente Odontologia. O abençoado que arrancou meus quatro sisos não nascidos em 3 horas de cirurgia, e que me chamou de corajosa e de maxilar e gengiva fortes, é professor desse curso até hoje, mesmo que a Universidade agora se chame Brasil e tenha ligações financeiras escusas com CBF, Flamengo e afins.

No ano em que comemoraria seu Jubileu, suas Bodas de Ouro consigo mesma, ela mudou de nome. Até no meu currículo Lattes. Sem minha permissão. Antes disso, quando eu estava em meus últimos anos, os professores já se despediam aos pouquinhos. Era época de copa do mundo e construção do Estádio do Corinthians, e eu vi todo aquele terreno se transformar. Vi o Terminal Corinthians-Itaquera crescer. Meu ponto de ônibus mudou daqui pra lá duas vezes. Todo esse caminho e essas transformações foram embalados por Pink Floyd em meus ouvidos. Até que me formei, me separei do meu primeiro namorado, mudei de rota e fui pra Zona Norte e depois Sul. Quase não me lembro mais dos cochilos que eu dava ouvindo Echoes, do sol batendo nas frestas das Eritrinas no inverno ali no meu querido e confidente Parque do Carmo. Quase não me lembro mais da sensação de flutuar ouvindo Summer '68. Quase não me lembro mais... Faz tantos anos.

O Castelo caiu.

De lá eu fui para o Carandiru. Um eterno retorno em minha vida. Coisas cruciais me aconteceram e o núcleo foi aquele pavilhão. Dois cursos. Muitas histórias pra contar. Fiz o curso técnico em Museologia emendado com a universidade. O intervalo entre eles foi a copa do mundo de 2014, apenas. Em outubro eu já queria desistir do curso, muito ruim. Os professores todos me irritavam. Boa parte dos alunos também. Mas arranjei meu estágio em um museu e tive que continuar, para ter certificado. Terminei o curso cuspindo para cima e dizendo: jamais pisarei aqui novamente.

Não preciso dizer que caiu bem na minha testa, né? Um ano depois estava eu lá, novamente, fazendo biblioteconomia. Uma bolha de felicidade em toda a minha história acadêmica. Uma turma quase sem defeitos. Professores amigos. Uma biblioteca viva. Nós demos, modéstia a parte, vida ao Carandiru. Graças ao Lucas, principalmente. Mas nós éramos seres sociais querendo mudar o mundo, fazer eventos, críticos. Felizes. Teve Festa Junina. Halloween, festa de encerramento. E eu me acabei de chorar nessa festa última, ouvindo Sangue latino, e me sentindo órfã do Carandiru. Tinha ali me redimido pelo ódio que senti. Achei que seria um ótimo desfecho para uma história. Mas teve outra.

Esse semestre o curso de museologia não abriu vagas. Burrices burocráticas egoicas. É um edifício que uniu, por pouquíssimo tempo, essa tríade poderosa de preservação de memória e informação: Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia. Mas estamos falando de egos coordenando, gestando, curando essas áreas. Ninguém se une. Todos são uns melhores que os outros - menos a biblioteconomia, ela é quase 100% humilde e colaborativa -, mas igualmente incompetentes em se ajudar e pensar maneiras de barrar a burrice administrativa estadual aliada a desejos egoístas corruptos de quem detém poderes nessas bolhas profissionais.

Engraçado pensar que minhas histórias, que definiram minha vida profissional e meu círculo de afetos até aqui, têm morrido pouco a pouco estruturalmente. Dia 3 de junho estive na Etec para ver Marina e percebi a biblioteca apagada, fechada, sem a salinha de estar que Lucas tão doce e competentemente organizou. Era só mais um depósito de livros de uma escola qualquer. Até a lanchonete, que tinha seus sanduíches muito mais saborosos que qualquer Subways, fora desmontada. Havia apenas uma exposição feia pela metade sobre a Frida, umas pessoas zumbizando pelo pátio, e novamente aqueles cartazes horrorosos em craft pendurados na escada. O que vi ali foi um cemitério. Duplo cemitério, se pensarmos a história original do pavilhão. Credo.
Etec Parque da Juventude
Carandiru, 3 jun. 2019
A biblioteca
Aqui onde trabalho, a mesma coisa. E é essa parte que me fez querer escrever esse texto. Há um salão, que já foi usado para ballet, e que provisoriamente foi nosso setor administrativo enquanto reformavam o forro do nosso pavilhão original. De vez em quando entro lá para me olhar no espelho das bailarinas, porque sou vaidosa e converso comigo mesma, ou mesmo danço no escuro. Ontem entrei para me olhar porque minha roupa estava bem bonita e minha postura estava altiva. E eu sempre entro nesse salão com nostalgia. Hoje ele está sem forro, porque a obra foi parada pela metade. Meu pavilhão original foi concluído, e na hora da reforma deste, tiveram que parar a obra. Então você enxerga o telhado, tem muita madeira, poeira, e tudo mais. Patrimonialmente horroroso, mas esteticamente lindo.
Caos: A beleza da destruição
Entrei ali e me veio uma tijolada abstrata na cabeça: em janeiro eu estava ali, ao lado da sacada, sentada em minha mesa, provavelmente morrendo de dores nas pernas, mas feliz, observando a Resedá! Com Marina, Stella e Bia, conversando sobre os deuses gregos, organizando aulas e suspirando por Hades (Hades, no meu caso, porque sou gótika que dança nas trevas e adora um submundo com suas sombras). Era um local improvisado, desconfortável para muitos, caótico, com cara de antiquário bagunçado, mas era tão compatível com o que eu mais gosto de experienciar na vida!
A origem de Helenita Resedá
Tanta coisa aconteceu nesse ano, que parece que janeiro foi em outra década. O salão está com a obra em suspensão, mas será reformado. Uma construção na destruição. Toda construção destrói algo, é o que tenho concluído nos últimos meses. E li algo parecido em alguma página esotérica que já nem sei qual mais. Mas até Nietzsche falou. E se ele falou, tá falado.
"O que Nietzsche expõe nesta obra¹ é sua intuição e sua experiência da vida e da morte. Tudo é uno, nos diz. A vida é como uma fonte eterna que produz constantemente individuações e que, ao produzi-las, se desgarra de si mesma. Por isso a vida é dor e sofrimento: a dor e o sofrimento de ver despedaçado o Uno primordial. Mas ao mesmo tempo a vida tende a reintegrar-se, a sair de sua dor e reconcentrar-se em sua unidade primeira. E essa reunificação se produz com a morte, com o aniquilamento das individualidades. Por isso a morte é o prazer supremo, enquanto significa o reencontro com a origem. Morrer não é, contudo, desaparecer, mas somente submergir na origem que incansavelmente produz nova vida. A vida é, pois, o começo da morte, mas a morte é condição de nova vida."
Tantas torres e tantos castelos tombaram. Me pergunto se minha torre caiu, se continua em queda livre, se está intacta. Já não enxergo mais. O fato é que tijolos estão despedaçados pelo chão.

1. Andrés Sánchez Pascual, El Nacimiento de la tragedia, p. 19-20, Alianza Editorial, 2004, Madrid - citado em NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia. São Paulo: Escala, s/d.

Nenhum comentário

Postar um comentário

© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo