4.7.20

Criança no tempo

Darren Aronofsky - Black Swan, 2011. Natalie Portman e Vincent Cassel

Eu ia postar uma música que me lembra de mim mesma, mas já percebi que fiz isso ano passado. Então só vou postar a música, sem ela estar efetivamente em meu 30 day music challenge.
Child in time é um grito que eu gostaria de dar em meus momentos de silêncio. Sou fera silenciosa, que ruge por dentro. E hoje acordei às 4am, numa semana de muito trauma revelado e auto perdão (mercúrio retrógrado em câncer), anotando pensamentos que só fui compreender quase dez horas depois.

Sempre a vida me mostra que ninguém exige nada de mim, senão eu mesma. Faço muito isso pela criação que tive, opressora que nem o diabo, talvez refletido no céu pelo meu saturno em trígono com a lua. Em poucas palavras: eu exigi de mim uma responsabilidade de adulta antes mesmo de ser criança.

O poder que eu tenho nem sempre é posto para fora, e por isso existem tantas explosões vulcânicas. É o meu jeitinho. Nem sempre correto, claro. Mas estou mais para bobo da corte, menestrel, homem ridículo, do que pra príncipe. É um baita poder. Ferino. Porque, percebi, sempre quis ser adulta para me vingar de toda a repressão e repreensão que me acontecia. Existe uma cena da novela A Indomada (estou rindo agora, com o título da novela), em que Zé Leandro vai com a filha Eulália até um horizonte, no crepúsculo - se minha memória não falha -, pega um punhado de terra e diz a ela: terra é sempre terra. Nisso há alguma promessa feita, o pai morre, e ela volta vinte anos depois para se vingar. Eu cresci vendo novelas e lendo livros de contendas entre famílias, amo o cangaço e tantas outras histórias. A justiça pulsa em meu sangue, mas às vezes, por falta de timing, essa sede de justiça acumula-se em sabor amargo de vingança. É aí que o caldo entorna. Então queria me tornar adulta não apenas para fazer diferente, mas para me vingar. Quando uma criança nasce, os antigos rezam para que ela "vingue". É bem por aí. Minha vida é uma vingança: contra o patriarcado, contra o capitalismo, contra a classe média, contra a xenofobia, contra a cidade, contra a civilização.

Então a dor que eu acumulo nos meus silêncios, que eu sinto sem saber dar nome, quando sai é um estouro. Talvez eu devesse falar com certa vergonha e arrependimento, mas sempre essa força acaba me saindo como vaidade. Quase escrevi agora: "desculpem", mas "desculpem", nada. Claro que estou aqui para superar a mim mesma, como propõe Hemingway. 
Não há nobreza em ser superior ao seu semelhante. A verdadeira nobreza é ser superior ao seu antigo eu.
Mas também vou de Clarice, que diz:
Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. 
E, por edifício, cito o pai de Viviane, pedreiro e filósofo baiano: "não começamos a construir um prédio do último andar". Talma, por sua vez, me explicou a ordem da vida a partir do nascimento: "Viver é isso. Eternas etapas. Não corre antes de gatinhar, levantar , andar, trotar e correr. Tudo tem processo." Eu, que amo o processo, que amo O Processo, nego esse amor, metendo os pés pelas mãos. E eu mesma me disse, hoje ainda, horas antes dessa conversa com as amigas: você nunca faz um bolo só tendo a cereja como ingrediente. Deve se mexer com o cru, com o processo de cozimento, até chegar na cereja, que muitas vezes é desnecessária.

Por que estou dizendo tudo isso? Por causa do auto perdão. Eu não sei errar. Sei admitir erros racionalmente. O Ego, o consciente se esbaldam de trabalho bem feito. Mas o inconsciente cobra de noite, o coração pesa por tentar pulsar, quente e úmido, com uma lâmina fria cortando seu ritmo. É cruel sentir culpa pelo que se é, e sentir culpa por coisas que na verdade foram acertadas. E escrevo para sentir que entendi, porque saber que entendi só vale da boca (ou dos dedos) para fora. Atingir dentro é muito mais profundo.
Ainda sou orgulhosa demais para ouvir conselhos, para admitir erros e para receber sermões. Enquanto for fechada para essas interferências externas, nada mudará dentro de mim, e não conseguirei ser superior a mim mesma. Humildade. Resiliência.
Um diário compartilhado, 22.8.19
Esse texto é um pedido de desculpas. Não sei se externo (acho que também), mas com certeza interno. Peço desculpas a mim mesma do passado, por cobrar atitudes que na hora não me vieram à cabeça. Peço desculpas por me torturar por ter tido apagões na mente quando questionada se eu queria conversar sobre minhas dores. Eu não sabia o que dizer, porque não sabia o que sentia. E não saber o que se sente é perigoso: é dar as rédeas de tua carroça para outra pessoa guiar os teus cavalos e decidir por que caminho percorrer. E isso aconteceu muito comigo. Com homens, desde o meu pai. Com mulheres que me eram subordinadas e pessoas a quem eu era subordinada. Nem todos foram corretos comigo. Muitos tentaram acertar, erraram tentando. E eu pensei neles quando deveria ter pensado em mim. Me calei por eles, quando não gritei por mim. Fui príncipe, no meu momento de ser ridícula. Fui exposta por isso. Fui silenciosa por desespero de gritar, fui silenciada, ignorada quando quis falar. Eu, que sou tão sombria, introspectiva, elegante e comedida, fui jogada num palco onde outro era o diretor da minha cena. Mas o monólogo era meu! Eles esperaram, talvez, um improviso meu. Um show. E eu lhes dei um apavoramento que me assusta até hoje. É como se eu tivesse posto uma corrente feito colar de diamantes no meu próprio pescoço, dando-lhes a ponta para segurarem. Por que fiz isso? Não sei. Ou talvez, sei: por não saber dirigir. E aprendemos a dirigir quando conhecemos bem o mecanismo e macetes dos veículos que somos. 

Não sabia quem eu era, e até nem sei quem sou. Mas busco entender quem estou sendo. E quem eu sou agora me dá muito orgulho e medo. Medo porque é enorme. Medo porque ainda não saiu muito bem do casulo. Mas eu não sou mais quem eu era. E preciso entender - é por isso que escrevo -, porque me entendendo saberei lidar comigo e com os outros.
(...) fecha, todavia, os olhos e faz por ignorar que o apego desesperado ao próprio EU, a desesperada ÂNSIA de viver, são o caminho mais seguro para a MORTE ETERNA, ao pásso que o SABER MORRER, RASGAR o véu do mistério, ir procurando eternamente mutações em SI mesmo, conduz a IMORTALIDADE (...).
Hermann Hesse, O Lobo da estepe
Não se pode ter tudo na vida. "A vida é feita de escolhas", aprendi no emprego. A vida é feita de cortes, e percebi que, mesmo sem analisar muito bem, eu tomo essas iniciativas cortantes. Sou aquela que fere, que virá mais tranquila. Sou a terceira lâmina.

A vida é feita de escolhas, e era escolha o que o sexto arcano me pedia naquele final de agosto de 2019. Escolha que demorei a fazer. A escolha era entre um ser e o tempo. Tentei escolher o ser, que escolheu não ser. Enquanto isso, o tempo vinha e me puxava com a foice pelo pé. Até que escolhi o tempo, e senti culpa pelo que deixei para trás. Mas cortei, silenciosa, o laço. Laço que me era a corrente de diamantes. Acordo assustada sentindo a ponta da joia fisgando meu pescoço e, de dor cega, me esqueço que é só cicatriz. Não tem corrente, não tem mais faca enfiada no peito. Apenas tatuagens emocionais. Bonitas, até. Me fazem criar textos como esse. Contos. Colagens. Conversas. Crio a lágrima no rosto alheio. Sou o próprio Don Juan De Marco, com aquele magnetismo infalível da doença que é o romantismo incurável.

Quem muito quer, nada tem. E o tempo necessita de vazios, espaço, ócio, intervalos. A música é a expressão artística que mais nos enlouquece porque justamente respeita e é feita desses silêncios. E foi no silêncio que me encontrei. Que tive tempo para mim. 
Sweet child in time
You'll see the line
The line that's drawn between
Good and bad
See the blind man
Shooting at the world
Bullets flying
Ohh taking toll
If you've been bad
Oh Lord I bet you have
And you've not been hit
Oh by flying lead
You'd better close your eyes
Ooohhhh bow your head
Wait for the ricochet
Acompanhe meu trabalho no Estúdio São Jerônimo
Não é que eu não acredite nas suas palavras, mas dizer para você que "tudo bem"... todos os "tudo bem" que eu disse pra você só aprisionaram/calaram a minha dor, é negar toda a dor que já senti. Seria injusto comigo ser justa com você.
14.05.2020 06h40

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Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo