9.5.22

sem destino

Mas quem é o homem que viverá e verá a morte? / As horas enganosas da morte são as coisas mais incertas. / No entanto, não há razão para que você deva cuidar das horas.

Escrevo em pelo menos duas ocasiões: quando estou muito feliz — e é o tipo de texto que me arrependo e acho horroroso — ; quando estou muito indignada ou triste — são meus textos favoritos, mas os mais difíceis de ler. Tanto que é grande a possibilidade de eu não me ler e abandonar o texto publicado por aí, para outros olhos que não os meus.

Isso já é horrível. Mas acontece que não escrever é pior ainda, e é por isso que estou tentando, com medo.

Eu tenho medo e medo está por fora
O medo anda por dentro do teu coração
Eu tenho medo de que chegue a hora
Em que eu precise entrar no avião
Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão, cidade morta
Placa torta indicando a contramão
— Pequeno mapa do Tempo, Belchior — o cabra cearense que São Paulo gentrificou e cagou em cima com seu esquerdomachismo e moda odiosa hipster

Parei muitas coisas que fazia, desisti mesmo, Dei um tempo. Porque 2021 conseguiu ser pior que 2019, e eu achava que isso fosse simplesmente impossível. Trabalhei fora mais uma vez, e todo o dinheiro que eu recebia (e mais) gastei com tratamento veterinário das minhas idosas Nina e Nininha, que se foram em outubro/21 e abril/22. Lutei até onde pude, e não posso dizer que deu errado. O que fiz foi necessário e as ajudou a partirem da melhor forma que conseguiram, mesmo que tenha sido horrível o processo. Mas acredito que a Natureza é sábia e o Tempo tudo sabe e resolve. Tempo esse que é meu deus de devoção.

Mas tudo isso dói e é extremamente pesado. Madrugadas em clínicas veterinárias, vendo sofrimento alheio e mortes sangrentas. Nem eu, que também tenho como Sagrada essa Senhora de Manto Negro, aguento sempre com tranquilidade. Mas com aceitação. Ainda assim estive com elas, até os últimos suspiros. É inesquecível o cheiro, o tato, o olhar, é um compartilhamento de um processo extremamente intenso, e dava para ver nos olhos de nós todas o medo de se deixar levar. Mas eu sei que é mais saudável e justo deixar ir. E eu disse isso a elas. E digo isso a mim mesma.

É mais certo e saudável respeitar o Tempo e o modo das coisas. Não todas, claro, não estou dizendo que não devamos lutar. Mas é compreender até onde a luta é necessária, até onde ela vale a pena.

Tenho dificuldade e necessidade de aprender a desistir. E preciso perceber quando persistir. É um macete importante para seguir vivendo, e não falo apenas de idosas em estado terminal, sejam elas animais da nossa espécie ou de outras. Tem a ver com eventos, momentos, relações, lugares, pessoas, tudo. Tudo tem início, fim e meio. Ultrapassar esse pacto sagrado com o Tempo é desrespeitá-lo e é destruir a harmonia do que era para ter sido.

Sempre penso no "felizes-para-sempre". Quando é para sempre, acredito que não seja feliz. A princesa que todo dia faz tudo sempre igual e se sacode às seis horas da manhã e sorri com um sorriso pontual e beija o príncipe com aroma de hortelã. Eu gosto do conflito e da jornada, do drama, do clímax. Coisas resolvidas e com ponto-final estão mortas, e por mais que eu tenha a Morte como sagrada, é por ter respeito a ela que preciso viver. A morte cria a vida, é ela quem determina desde e até quando respiramos.

E nos delírios meus grilos temer
O casamento, o rompimento, o sacramento, o documento
Como um passatempo quero mais te ver
Oh, com aflição

— Vila do Sossego, Zé Ramalho

Mas sempre me pergunto: e se o Tempo daquele evento, daquele contato, daquela situação, era para ter sido maior e eu não empunhei minhas armas? E se me dei por vencida, cedo demais? Fiz o que fiz, e o que está feito está feito. O que era para ser foi, o que tiver de ser será, o que está acontecendo já aconteceu. Também acredito que tudo é como deve ser. Estóico, sim. Mas creio que tudo cabe no campo das possibilidades. Se eu penso que algo não foi como deveria, vou colocar culpa em mim, algo ou alguém, quando apenas foi como tinha que ser.

Essa divagação toda obviamente tem a ver com dúvidas que ando tendo. Não pelas minhas pets, é outro assunto. Mas há um quê delas nisso também.

Hoje estou onde queria estar, com questões a resolver. É muito maluco se perceber no melhor momento da vida, com tantas coisas fortes que aconteceram e tão pouco a receber. Mas é isto: estou prestes a fazer trinta anos. Me abri à possibilidade da Arte, que eu nunca tive como meta, mas me despontou como destino. Tudo que eu fui nos últimos trinta anos me parece que foi preparação para quem estou me tornando agora. Alguém que eu sinto um orgulho do caramba de ser, mesmo que por dias eu esteja cansada de tudo o que sei, de onde e quando existo.

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

— cogito, Torquato Neto.
Cheguei a um ponto da vida que "não sei onde tô indo, mas sei que eu tô no meu caminho". É bom planejar, mas é melhor ainda não saber — o curioso caso da oraculista que precisa do mistério —, pois nas surpresas da vida o destino se revela, mil vezes melhor que qualquer desejo. Só que é difícil. Para quem viveu a vida tendo que lutar, sonhando ou acordada, que sempre planejou, organizou, foi atrás, deixar a vida acontecer através do acaso é quase que dar palco para uma crise de pânico.

Só que cansa tomar as rédeas da vida em minhas mãos o tempo todo. Por que sou sempre eu a tomar atitudes? A entrar em contato, a ter interesse em materializar as coisas. Sou imperadora das minhas decisões, mas não posso e nem quero ser das decisões alheias. Não podemos ter controle sobre aquilo que não é nosso, até porque muitas coisas nossas são incontroláveis por nós mesmos, por exemplo os desejos e sentimentos. O que podemos controlar são nossas atitudes, e às vezes nem isso. Eu quero é paz e tranquilidade, se eu plantei, que a semente também tenha sua própria força para se deixar romper e brotar, dando bom dia ao sol, crescendo e criando raízes. Tenho tanta vida pra viver, tantas coisas pra fazer. Se eu olho pro abismo, que ele também venha e me olhe de volta, compreende?

Talvez vocês não entendam nada, nem eu. Na verdade entendi sim. Mas creio que tudo o que disse, por mais que eu chore, reze, peça e implore para eu mesma agir diante das situações, signifique que eu tenha que esperar. Saber esperar. Não devemos fazer tudo, nem tudo é de nossa responsabilidade. As coisas acontecem e devem acontecer. Sem planos, sem destino. Se tudo o que eu quero é uma motocicleta e uma estrada, se eu sou a estrada, se eu sou esse pássaro livre que tanto martelo na cabeça de vocês e no meu próprio peito, eu preciso deixar que a vida seja o vento que me permita voar. A estrada que as rodas da minha caranga vão rodar.

Easy Rider (Sem Destino), 1969
Ninguém sai com o coração sem sangrar
Ao tentar revelar
Um ser maravilhoso
Entre a serpente e a estrela
 
— Entre a serpente e a estrela, Zé Ramalho

Resolvi fazer uma playlist do texto. Comentem se preferem spotify, youtube, ou ambos!

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© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo