29.4.19

O sol das 15 horas

Fotografias da colagem por mystic jupiter; música: Pink Floyd - Grantchester meadows
Existe um período mágico no dia. Um momento em que parece que a vida se desnuda de todas as máscaras, e retorna à simplicidade inicial, ancestral, coletiva e humana. Esse momento é o das 15 horas.

Desde pequena, seja por memória afetiva ou por pura abertura dos seis sentidos, eu consigo parar e sentir paz. Mesmo em meio a uma crise de ansiedade. É ver o Sol dando sua primeira evidência de um tchau e anunciando a chegada da Lua. É o momento em que a mãe chega em casa para abraçar com toda a força e lembrança aquilo que é seu.

É o momento em que costumamos tomar café. Lá em tia Rivanda, nas últimas vezes em que fui, era avisada deste momento assim: ☕ - via whastapp. Aqui em mamãe, é o instante em que muitas vezes ela chega com queijos, pães, biscoitos lá da Casa do Norte do Seu Zé. E, no passado, quando papai chegava da casa dos irmãos ou primos na rua de cima anunciando com Eeeeeeeeeeu sou a mosca...

No serviço, tudo pode estar ruim, péssimo, desandando. Mas nada é eterno quando sei da hora do café. Tem gente que pensa no almoço, tem gente que pensa na hora de ir embora. Eu penso naqueles 15 minutos vendo o Sol do lado Oeste, já morno, cansado. Talvez isso o faça diferente da manhã: a morneza do Sol matutino é uma preguiça ativa, uma juventude calorosa. A morneza da tarde é quase uma frieza, um sono e tranquilidade de dia aproveitado (por ele mais do que por nós - ou também por nós, mas nós que somos, talvez, mimados e ingratos demais para ver que cada dia tem suas vitórias).
Meu quintal e uma caneca que na verdade não uso, mas é linda.
Hoje fui lavar uma panela para esquentar o leite e vi a sombra luminosa do sol pela janela da cozinha. É também o momento do canto de alguns pássaros. Quando pequena, tínhamos muitos, papai chegou a ter trinta de várias espécies numa casa de dois cômodos. Acostumei com suas vozes de um jeito que já tratava todo aquele som como silêncio. Mas é nas preguiças solares que seus cantos são evidentes. (Agora não tenho nenhum, não se preocupem).

Acho que o momento foi feito para eu escrever aqui. Me lembro da primeira vez em que prestei atenção em Summer '68, e foi num final de tarde, cuidando de um passarinho. Hoje, fui buscar algo para ouvir - Led Zeppelin não estava combinando -, e vi pelo Spotify que meu camarada Rafael estava ouvindo Sysyphus, Pt. 4, do maravilhoso Ummagumma. Ele inclusive tem um texto sobre esse disco que nunca me esqueci.

Esse disco à primeira, milésima vista, pode ser um pouco "diferente" para quem não mergulha nas profundezas flúidas floydianas, mas faz total sentido se você considera toda essa questão do sol, do orvalho, das folhas úmidas, do cheiro do ar fresco, dos sons mais mínimos de aves, insetos. Se você observa o musgo na raíz da árvore, a flor balançante, e percebe os silêncios.

Falando em silêncio, eu percebi muito bem esse daqui. E as moscas na janela me hão de ser lembradas agora pela singela Several species of small furry animals gathered together in a cave and grooving with a pict! - sem o triste fim da música, obviamente.

14.4.19

11. O cordel estradeiro

Meu primeiro due tone: Cordel do Fogo Encantado por Jornal Portal do Sertão
Aqui é cantado um nordeste que alguém poderia até dizer romantizado, mas acredito que seja algo mais profundo: um fragmento de nordeste real interligado fortemente com o seu passado, passado do nosso Brasil. Assim como podemos ver em Interestelar, uma sobreposição de temporalidades no eterno presente.

Tenho lido Sérgio Buarque de Holanda, estudado Gilberto Freyre, refletido minha própria visão sobre a terra dos meus pais a partir das incongruências, complexidades e paradoxos dos referidos autores, lembrando de conversas com minha irmã, e de representações do Nordeste em outros locais, como o Sudeste, de quem sou filha (por ocasião, e não por merecimento). Peguei aqui Os sertões para me inspirar de alguma forma e ter o que citar e o que dizer... Mas eu apenas digo a vocês que meu Nordeste é uma Macondo brasileira. Não por imitação, já que o Nordeste é o lugar mais original deste mundo. Original por ser atemporal.

Este, por mais que não seja o, é um nordeste. Nós possuímos fragmentos de um passado colonial, e mesmo feudal, ainda vivos no presente. Não só herança moura, européia, mas africana, americana. Fortemente. Algo que, por mais que a globalização o imperialismo avance, de alguma forma ainda não foi perdido. Está no Maracatu, relembrado no manguebeat, está nos artesanatos que os gringos e os paulistas adoram comprar, mas que não calam sua xenofobia por aí. Está nas igrejas tricentenárias, nos engenhos persistentes, nas memórias dos meus (nossos) pais, tios, avós. Nos filmes de cangaço, nos sertões de Euclides, nas Vidas Secas de Graciliano, nas Bahias de Jorge Amado, no cheiro da terra, lenha, gado, borralho. No som do chocalho. Nos juazeiros e umbuzeiros. No céu aberto e escancarado, caindo sobre nossas cabeças. No r rasgado, na polidez do vocabulário, na genialidade do repente, na talhada dos cordéis, da Pedra do Ingá, da Boca, do Lajedo de Pai Mateus, nas Trilhas de Sumé. Na Paraíba masculina (sim) mulher-macho (sim) sim, Senhor!
Eu também sou cangaceiro
E o meu cordel estradeiro
É cascavel poderosa
É chuva que cai maneira
Aguando a terra quente
Erguendo um véu de poeira
Deixando a tarde cheirosa
11. a song that you never get tired of (uma música da qual você nunca se cansa)
Cordel do Fogo Encantado é uma banda teatral - "um grupo cênico-musical, compartilhando o teatro e a poesia oral e escrita dos cantadores e ritmos afro-indígenas da região" - nascida no ano de 1997 em Arcoverde, Pernambuco. Conheci ano passado, provavelmente porque Lirinha, o vocalista, é componente da trilha sonora de Lisbela e o Prisioneiro. Curiosamente, na mesma semana em que conheci a então falecida banda, eles voltaram! E com tudo, parece.
"Cordel" é sinônimo de história de um povo em forma de poesia.
"Fogo" é o elemento mais representativo do lugar de origem e da intenção músico-poética inconstante e mutável do grupo.
"Encantado" ressalta a visão fantástica e profética dos mistérios entre o céu e a terra.

Leia os outros textos do 30 day music challenge aqui.
© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo