Ouvir a voz rouca e rasgada do Adoniran é amar São Paulo. É chorar São Paulo. Não pelos paulistânos e paulistas "tradicionais", quatrocentões, de modo algum. Mas pelo trabalhador que construiu a cidade, que levantou-a do barro e que, de um lugar inacessível e inóspito, a fez centro econômico e metrópole que acolhe diariamente milhões de pessoas de todos os cantos do mundo. Seria lindo, se não fosse trágico. Trágico, porque há xenofobia e mixofilia. Desigualdade social, econômica, e por aí vai.
Não posso dizer "mas vamos falar de coisa boa!", porque o post é mesmo trágico. É a história de Iracema, é a música que me parte o coração.
27. a song that breaks your heart (uma música que parte seu coração)
De vez em quando, geralmente quando estou triste, minha playlist (antes de me interessar pelo post-punk britânico) certamente tem Nelson Gonçalves, Bezerra da Silva e Adoniran Barbosa.

Voltando à Iracema. Me senti Adoniran quando ouvia os Demônios e chorei, eu chorei de dor porque, bem, a vida não é lá essas coisas que a gente acredita na juventude. Ainda tenho abissal dificuldade em dizer meus sentimentos, então recorro às artes audiovisuais e textuais. Me mascarando em coisas já ditas, me sinto protegida, porque qualquer coisa eu digo que não sou eu, é a música que está falando, olha só. É aquele texto com referências e ABNT. Eu apenas concordo, não quer dizer que eu sinta, ou que eu seja. Mas é: eu sou tudo isso sim, apenas covarde e pequena.
Me senti Adoniran, porque Iracema, eu nunca mais eu te vi. Porque Iracema, eu perdi o seu retrato.
Não sei se é assim com vocês, mas enquanto me lembro de datas, e associo lé com cré, minha memória visual é bem comprometida. Tudo me lembro atrás de nuvens, mesmo que tenha acontecido uma hora atrás. E me forço a lembrar revivendo momentos. É até interessante essa parte, porque me lembro das aulas da professora Sandra e ela explicava sobre temporalidade, testemunhos, etc.
Lembro de algo como que a memória se confunde muito com a imaginação. E como as lembranças são efêmeras, para compôr uma linha do tempo decente nosso cérebro vai inventando o que perdeu de informação. É como um restauro mental: fica parecido com o que foi, mas já não é mais. Até o momento em que o frágil papel da memória se dilui e tudo o que se tem é o material enxertado, posterior, não original.
Quando ouço de lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos, Iracema, eu perdi o seu retrato, me sinto o noivo de Iracema, faltando vinte dias para o nosso casamento, naquela confusão do público em volta do corpo outrora pinchado no chão da avenida São João, recolhendo suas meias e seus sapatos. Naquela época registros fotográficos não eram como hoje. Uma fotografia era cara. Mas Iracema se manteve viva no coração de seu noivo e na música de Adoniran Barbosa.
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Avenida São João, déc. 1950. |
Há uma questão que professora Sandra também dizia nas aulas. "Uma árvore caiu no meio de uma floresta. Ninguém viu. A árvore caiu?" - como dizer que sim, se ninguém viu? Que árvore? Que floresta? Se ninguém viu, não aconteceu. Então, tem também tem essa citação que encontrei num livro da biblioteca do museu:
No México existe a crença de que cada pessoa morre três vezes:Parece um texto sobre morte. Mas não somente. É sobre perdas, sobre momentos findos, tempos que não voltam mais. Sobre não ter o timing. Não aproveitar o presente, ou querer tanto aproveitar todo o presente que a profundidade dele é pouca e se anuvia facilmente. A São Paulo que não é, a Iracema que foi minha, e nem o retrato dela tenho mais. O caminho que estava traçado e foi riscado. A não preservação de indícios, o desconhecimento da História. A memória que falha, a imaginação que confunde, a expectativa que se cria, a decepção que chega a galope (e é culpa do que expecta). O abandono, Iracema, meu grande amor foi embora.
A primeira é no momento em qua suas funções vitais cessam.
A segunda é quando o seu corpo é colocado na tumba.
A terceira acontece em algum momento no futuro, no qual o nome do falecido é pronunciado pela última vez.
Aí então a pessoa realmente morre.
Ted Klein para a Roots Web Review. (apud. REZZUTTI, 2013, p.267)
Mamãe e eu, Dedé Paraizo e os Demônios da Garoa.
* Este post faz parte do 30 day music challenge. Leia mais.