15.5.20

Turn the page

Hoje acordei cedo e fui dormir novamente, e acabei sonhando com Turn the page, a versão do Metallica, que eu ouvia demais no ensino médio. Tem textos meus do passado que eu nunca me esqueço que fiz, mesmo que o conteúdo seja completamente novidade para mim hoje. Literalmente gritei com esse texto enquanto o relia ouvindo a música. Faz 9 anos, e parece - de novo - que escrevi agora. Essa prisão da pessoa fictícia (era uma espécie de conto sobre um futuro do pretérito de mim mesma), por mais que emocional, baseada no cotidiano de uma vida sufocante, hoje pode-nos ser literal devido à pandemia e seu isolamento.

Hoje continuo com esse ímpeto de estradas sem fim, com essa banda que me rasga com essa voz do James Hetfield, essa gravidade do heavy metal que me é um ninho bastante confortável. A versão do Bob Seger rasga mais ainda, porque é original, fruto de uma época. Afinal, "All the same old clichés: is it woman? is it man?" deve referir-se ao período e espaço geográfico na década de 1970 onde os mais conservadores punham seus preconceitos em cima de roqueiros cabeludos e outros libertários, vide uma cena muito forte de Easy rider.
Later in the evening, you lie awake in bed
With the echoes of the amplifiers ringing in your head
You smoke the day's last cigarette, remembering what she said
What she said
Escrevi meu primeiro conto, com cara de conto, inclusive. Me acompanhem no Estúdio São Jerônimo, e quem puder, me pague um café virtual, já que não dá para nos encontrarmos para tal. É uma maneira de colaborar com meu trabalho.

26 de abril de 2011


Casa obscura, cozinha que não recebe a luz do Sol, rua plana e movimentada, corredor cinza e sem nem uma planta que nasça diretamente do solo (no máximo alguma planta estranha num vaso de barro marrom). Os fundos se dão para um enorme campo do bairro, com pequenas casas ao longe, outros campos mais longe ainda, torres de energia elétrica, o céu despencando do azul para o laranja.

E você se sente morta.

Ouve os gritos, risadas, pedaços de conversas dos que passam em frente à casa, você sente o frio do fim de tarde e ao mesmo tempo o calor do pôr do Sol.

Sua infância está mais viva do que nunca dentro de você, e fora também. Você se transformou numa das amigas de sua mãe que nunca mais viu (nem tornará a ver).

Compra produtos de limpeza na casa do pai de sua ex-professora, e de frente para a casa do vendedor você vê uma rua, onde havia aquele bar em que seu pai parava. Ao redor do bar algumas casas e mato e barranco. Os produtos de limpeza são do tipo que se usava nos anos ’90, aquele cheiro da sua infância, que é como uma foto quase em sépia, com aquelas famílias tão estranhas e aqueles sorrisos tão sinistros, cabelos engraçados, histórias pra contar.

Você olha para as torres de energia e se vê na estrada, se vê longe dali, em um lugar que também não é bom, e você só quer gritar e se despir de si mesma.

Vira para seu quintal e imagina crianças brincando ali, e quanto mais você pensa, mais volta no tempo, e mais dói, mais vive de seu passado. Não que ele fosse ruim, mas são coisas como de outra vida, sensações pesadas que mais ninguém percebe, mais ninguém entende. Nesse quintal você se vê criança, com outras crianças, não querendo estar junto delas, não querendo estar fora de sua casa. É o pôr do Sol. O pôr do Sol é como a morte. A morte deste dia, destas horas, destes momentos.

Você não quer estar ali nem com a pessoa mais amorosa do mundo, você só quer fugir, mas esse lugar te faz pensar que nenhum lugar deste mundo é seguro e suficiente para te satisfazer. É uma jaula, uma prisão, ou pior: um cômodo de concreto sem janelas, portas, frestas, brechas. É um cubo que te sufoca e te incapacita de se mexer.
Uma cama de casal que não te deixa dormir, a respiração do outro que entra quente pelo seu nariz como fogo e queima-te por dentro. Você só quer chorar e gritar, por mais que o ame, por mais que ele seja bom para você e te faça carinhos e cafunés.

Quer ir para essa estrada de campos estéreis e torres de energia elétrica que são sua única companhia. Você se vê passando por elas, e elas, mesmo paradas acenam pra você. Você sente saudades, sim. Você é humana. Mas se sente livre, sem passado ou futuro, o que importa é o agora. Você não quer que essa estrada acabe nunca, você não quer ver civilização, você quer morrer dirigindo este carro - mas você não está dirigindo, você está flutuando como se estivesse sendo guiada por um motorista invisível, num automóvel invisível. Seus cabelos ao vento e tudo o que você vê é aquela camada marrom das fotos antigas, aquele cheiro de passado que te acompanha, mas que não te sufoca. Porque você é dona do seu rumo, e nada te faz voltar por esse caminho. NADA.
And you always seem outnumbered, you don't dare make a stand
Make your stand
Here I am - on the road again
There I go - turn the page

Dennis Hopper - Easy rider, 1969 
© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo