28.5.20

Música que fez de nós o que somos hoje

Tenho vários textos bem pesados, densos, para postar aqui. Empaquei em um sobre personalidade, que está enorme. E escrevi à mão um sobre opiniões políticas, também bem pessoal, que estou com preguiça de digitar, e nem tenho tempo por causa dos artigos que a faculdade pede. Então vou postar algo rapidão.

Eis que acordei com vontade de ouvir meu velho Red Hot Chili Peppers hoje, de trás pra frente. É uma banda que amo toda, mas principalmente o início, funk metal. Há cinco minutos fucei ano a ano de músicas ouvidas na minha last.fm, o que diz muito sobre mim e pessoas que me influenciaram desde 2009. Isso até comprova uma teoria vampiresca que tenho e vou pensar melhor para dizer depois. É coisa constatada há anos. E eu vi uma mensagem holística no instagram: "Lembre-se de quem você era antes de te ensinarem como você precisava ser". Pouco depois, começou a tocar uma música do RHCP que eu amo e é bonus track do Mother's milk. Red Hot Chili Peppers é uma banda que posso dizer que não foi influência, mas algo que me interessei, depois de conhecer com os videoclipes na tv, fuçando a sessão de discos das lojas americanas do Shopping Aricanduva, encontrando cd's a menos de 20 reais e comprando, um de cada vez, a partir dos meus 14 anos. Infelizmente não cuidei por muito tempo dos cds, que foram se perdendo. O que se salvou dei para minha irmã, que é tão apaixonada quanto eu ou mais. Mas está tudo na internet, né?

Enfim, olha o nome da música: Song that made us what we are today. Lembro que ouvi, talvez ainda na primeira vez e pensei: meu deus, como pode uma música de quase 13 minutos? Achei sensacional, agressiva, confortável, deliciosa, livre. Esse, posso dizer com garantia, foi o primeiro passo que dei para o rock progressivo, de músicas muito, muito mais longas. E digo também, sem medo de errar, que essa é uma música que fez de mim o que sou hoje. De mim para mim. Mérito próprio, para usar termos complicados de serem usados.
Para quem quiser acompanhar minhas playlists intermináveis e com capas lindas, meu spotify.

15.5.20

Turn the page

Hoje acordei cedo e fui dormir novamente, e acabei sonhando com Turn the page, a versão do Metallica, que eu ouvia demais no ensino médio. Tem textos meus do passado que eu nunca me esqueço que fiz, mesmo que o conteúdo seja completamente novidade para mim hoje. Literalmente gritei com esse texto enquanto o relia ouvindo a música. Faz 9 anos, e parece - de novo - que escrevi agora. Essa prisão da pessoa fictícia (era uma espécie de conto sobre um futuro do pretérito de mim mesma), por mais que emocional, baseada no cotidiano de uma vida sufocante, hoje pode-nos ser literal devido à pandemia e seu isolamento.

Hoje continuo com esse ímpeto de estradas sem fim, com essa banda que me rasga com essa voz do James Hetfield, essa gravidade do heavy metal que me é um ninho bastante confortável. A versão do Bob Seger rasga mais ainda, porque é original, fruto de uma época. Afinal, "All the same old clichés: is it woman? is it man?" deve referir-se ao período e espaço geográfico na década de 1970 onde os mais conservadores punham seus preconceitos em cima de roqueiros cabeludos e outros libertários, vide uma cena muito forte de Easy rider.
Later in the evening, you lie awake in bed
With the echoes of the amplifiers ringing in your head
You smoke the day's last cigarette, remembering what she said
What she said
Escrevi meu primeiro conto, com cara de conto, inclusive. Me acompanhem no Estúdio São Jerônimo, e quem puder, me pague um café virtual, já que não dá para nos encontrarmos para tal. É uma maneira de colaborar com meu trabalho.

26 de abril de 2011


Casa obscura, cozinha que não recebe a luz do Sol, rua plana e movimentada, corredor cinza e sem nem uma planta que nasça diretamente do solo (no máximo alguma planta estranha num vaso de barro marrom). Os fundos se dão para um enorme campo do bairro, com pequenas casas ao longe, outros campos mais longe ainda, torres de energia elétrica, o céu despencando do azul para o laranja.

E você se sente morta.

Ouve os gritos, risadas, pedaços de conversas dos que passam em frente à casa, você sente o frio do fim de tarde e ao mesmo tempo o calor do pôr do Sol.

Sua infância está mais viva do que nunca dentro de você, e fora também. Você se transformou numa das amigas de sua mãe que nunca mais viu (nem tornará a ver).

Compra produtos de limpeza na casa do pai de sua ex-professora, e de frente para a casa do vendedor você vê uma rua, onde havia aquele bar em que seu pai parava. Ao redor do bar algumas casas e mato e barranco. Os produtos de limpeza são do tipo que se usava nos anos ’90, aquele cheiro da sua infância, que é como uma foto quase em sépia, com aquelas famílias tão estranhas e aqueles sorrisos tão sinistros, cabelos engraçados, histórias pra contar.

Você olha para as torres de energia e se vê na estrada, se vê longe dali, em um lugar que também não é bom, e você só quer gritar e se despir de si mesma.

Vira para seu quintal e imagina crianças brincando ali, e quanto mais você pensa, mais volta no tempo, e mais dói, mais vive de seu passado. Não que ele fosse ruim, mas são coisas como de outra vida, sensações pesadas que mais ninguém percebe, mais ninguém entende. Nesse quintal você se vê criança, com outras crianças, não querendo estar junto delas, não querendo estar fora de sua casa. É o pôr do Sol. O pôr do Sol é como a morte. A morte deste dia, destas horas, destes momentos.

Você não quer estar ali nem com a pessoa mais amorosa do mundo, você só quer fugir, mas esse lugar te faz pensar que nenhum lugar deste mundo é seguro e suficiente para te satisfazer. É uma jaula, uma prisão, ou pior: um cômodo de concreto sem janelas, portas, frestas, brechas. É um cubo que te sufoca e te incapacita de se mexer.
Uma cama de casal que não te deixa dormir, a respiração do outro que entra quente pelo seu nariz como fogo e queima-te por dentro. Você só quer chorar e gritar, por mais que o ame, por mais que ele seja bom para você e te faça carinhos e cafunés.

Quer ir para essa estrada de campos estéreis e torres de energia elétrica que são sua única companhia. Você se vê passando por elas, e elas, mesmo paradas acenam pra você. Você sente saudades, sim. Você é humana. Mas se sente livre, sem passado ou futuro, o que importa é o agora. Você não quer que essa estrada acabe nunca, você não quer ver civilização, você quer morrer dirigindo este carro - mas você não está dirigindo, você está flutuando como se estivesse sendo guiada por um motorista invisível, num automóvel invisível. Seus cabelos ao vento e tudo o que você vê é aquela camada marrom das fotos antigas, aquele cheiro de passado que te acompanha, mas que não te sufoca. Porque você é dona do seu rumo, e nada te faz voltar por esse caminho. NADA.
And you always seem outnumbered, you don't dare make a stand
Make your stand
Here I am - on the road again
There I go - turn the page

Dennis Hopper - Easy rider, 1969 

12.5.20

Revisitando-me

Paul Stevenson. Pompeii mosaic (s/d), 2009. (particularmente, acho essa expressão a coisa mais perfeita em todo o mundo da arte que conheci até o momento)
"Um velho mundo, relembrando e acordando uma velha Helen, que ainda me orgulho muito de ter sido e ainda ser. Hasta siempre." - eu escrevi, dia 24 de outubro de 2014. Parece que minha vida é um eterno esquecer-se e relembrar-se. Deixei tantas coisas pelo caminho, dei meia volta e fiz a mesma coisa, de modos diferentes.

Tenho quase cem rascunhos de textos não terminados, ou simplesmente arquivados, aqui no blog. Texto de quando eu não tinha ideia do que fazer da minha vida até aqui. Muitas vezes sem nem conceber a ideia de tudo o que me aconteceu na última década.
Emprego toda a minha inteligência para observar minha vida de tão longe e de tão alto, que ela me aparece como a vida de um outro e não a minha própria. Mas esses processos de conhecimento são difíceis e requerem um mergulho dentro de nós mesmos e uma saída totalmente para fora de nós.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano
Estou de novo com aquela sensação de noite no meu peito, sensação que sempre tive nos passeios de carro retornando da casa da minha madrinha, vendo as estrelas, as sombras das árvores e os muros preenchidos de propagandas políticas e pixações. é uma compressão bem forte, algo querendo sair e algo querendo barrar essa exposição. Talvez seja meu júpiter dentro de mercúrio. Talvez no meu mapa seja a vez de Zeus estar dentro da coxa de alguém. Parece que algo vai explodir, a sensação é iminente. Não sei quando, não sei se agora, não sei se de uma vez só. Ou se várias vezes. E mais uma, e outra.
We sail through endless skies
Stars shine like eyes
The black night sighs
The moon in silver trees
Falls down in tears
Black Sabbath, Planet caravan
Eu tenho tido, na minha vida toda, muita raiva. Sentir raiva é como ser um vulcão em erupção. E a melancolia nostálgica, que também sinto, é o esfriar do magma, o fazer da obsidiana, a cidade arrasada, agora arqueológica. É Pompéia e Herculano após Vesúvio. Somente pedras, rostos ocos, fantasmas de quem um dia viveu e hoje é casca onde vagam almas errantes usurpadoras. Fica só o rastro daquilo que foi arrasado.
Pink Floyd - Careful with that axe, Eugene. Live at Pompeii, 1972
Algumas coisas me chamaram a atenção para mim mesma de 7 anos pra cá. Eu ouvia Kimono Kult. E nem lembrava que isso existia. Eu gostava muito mesmo de Sailor Moon. Ainda gosto, mas fico triste e nem consegui ler os mangás ainda. Eu tinha twitter, e gostava da esquerda que hoje abomino! hahahahaha. É como se os jovens de hoje fossem eu há quase dez anos. Eu ia na USP e parecia não criticar. Escrevia textos em forma de diário mesmo, dizendo o que li (e como eu lia!), o que ouvi, o que assisti, e muito educada, muito prolixa, muito blasé. Hoje em dia até que não mudei muito o que defendia, mas estou muito mais filha da puta. Sem saco pra nada, pra ninguém. Eu costumava pedir desculpas pelas minhas opiniões. Eu era tão jovem, tão galera! Hahahaha. Explicava menos cada coisa, eram só desabafos e não tinha uma mescla de coisas aleatórias dançando como disco em torno do planeta que sou eu. Era um satelitezinho ou outro. Era muito mais politizada, acreditava no país. minha ideologia era uma camiseta de banda que eu estufava o peito feito pombo por me achar muito foda que eu era tão rebelde. Hoje em dia sou muito mais autoritária, politicamente falando. Até que combino com o país. Só que estou no extremo oposto da violência fascista desse nosso Brasil sempre conservador. Mas ainda violenta. Extremamente, esteticamente, apaixonadamente, escritoramente violenta.

Alguns textos pareciam - e talvez fossem - premonições. Tinha certa doçura, acho que o nome disso é Esperança. Mas quando foi aberta a caixa, Pandora expôs todos os monstros e, ao fechar, aprisionou justamente ela, né? A Esperança. Eu falava apaixonadamente do Espaço sideral e sua vastidão escura sem saber do tanto de arquétipos que ia envolver na teia que teci. Amava Júpiter, hoje Saturno. Era fã de Harry Potter. Ouvia mais rock progressivo. Usava distopia em tudo. Hoje nem precisa, né? Ponderei ser bibliotecária, quando nem sabia que entraria no curso de museologia. Elogiei (a porcaria do) curso de Museologia! hahahaha Com a pior coordenação possível... Devia ser inocente ainda. E estudei Biblioteconomia. E amei. Meu melhor ano dos últimos cinco. Ou sete. Já citava Goethe, mas era Os Sofrimentos do jovem Werther, porque li para a faculdade e sentia que a palavra paixão me definia muito bem. Hoje muito, muito mais. Sou vestida de paixão, e se eu fosse transformar em algo material, seria a pele do avesso, a carne quente, úmida de sangue, com veias borbulhando, cheias, rápidas, em contato de choque com o vento frio. Paixão é febre, é dor, é cócega, é morte, é desespero e grito ao mesmo tempo. Eu sentia muito, muito menos. Porque meus sentimentos eram sociais. Eu sentia coletivamente. Ainda sinto, hoje. Mas é como se o mundo estivesse mais e mais dentro de mim. Então viver é um eterno parir. Engravidei da minha ancestralidade, da minha identidade, do meu desespero, da minha dor. Talvez eu seja um pouco Gaia. As três primeiras pessoas que ouviram o que eu vou dizer agora se assustaram bem muito: na minha vida toda ejacularam traição em mim, e eu pari veneno. Hoje vi um vídeo de Pedro Cardoso para aquele Quebrando o Tabu que me impactou tanto quanto a minha própria frase:
A pessoa que odeia
sem razão
alguma razão tem.
Porque sempre
tal cidadão
se alegra
de tanto odiar.
Deve ser compensação,
por ter tido que adorar,
só por pura educação,
a quem talvez
o fez sangrar.
Isso é tão bonito. Num nível que eu não sei explicar sem ferir. Ele falava dos fascistas, mas a gente sempre aprende com o outro. Me vejo espelhada no mundo. Em vez de fazer do mundo meu bode expiatório, às vezes até me faço bode expiatório dele. Como mexo com simbologias, sempre me pergunto "isso serve para mim? para me ler?". Teve outra frase também, que me valeu o filme American psycho, que eu consideraria um spoiler, faço a bondade de alertar:
My pain is constant and sharp... and I do not hope for a better world for anyone. In fact, I want my pain to be inflicted on others. I want no one to escape.
Minha irmã, que seria minha gêmea, se não fosse seis anos mais nova, também costuma dizer algo que me define demais. Algo como: "Às vezes eu gosto de estar triste, porque é assim que eu acesso a arte". Bom... Não é a toa que eu ouço Glad to be unhappy do Vincent  Gallo há tantos anos...

Minha felicidade é estranha. Ela é aflita. E ela só nasce da transformação da minha raiva, ou da ebulição de mim. Então quando consigo parir alguma coisa que me preenche, o vazio da liquidez e a materialização da coisa em algo externo é uma realização impagável. E eu me preencho novamente. Sou um grande Ás de Copas que se preenche, transborda - porque sou inteira de mim - e derrama todo aquele líquido borbulhante por onde passa. Se recompõe, e se repreenche. E é nessa minha completude que me esvazio, e desse vazio eu me completo. Tenho minha própria dialética, meu próprio ritmo, minha própria dança - cósmica - e órbita.

Quando criança eu desenhava as palavras com os dedos. Primeiro, por não saber escrever. Depois, por não entender que tipografia de revista não era feita com caneta, e eu não entendia o a e o g serifados tão perfeitamente impressos. Então tentava decorar com o dedo, e copiar a mão. Já aludiram isso a pintar palavras. Eu sempre fui artista, nunca reconheci. Agora reconheço, e acho modéstia uma perda de tempo. Sei desenhar, sei dançar muito bem, aprendi a esculpir, a colar... Mas escrever é escorrer pelos dedos desde 1995. Escrever sou eu. Acho que é isso: nunca sei responder aqueles "quem sou eu". Deve ser porque eu sou escrever. E o que escrevo é tão inédito, até para mim, que eu sou tudo isso que escrevi, e nada daquilo que não escrevi ainda. O silêncio é meu nada, é meu espaço de apenas ser. E a palavra sou eu escrita, sou eu matéria, eu real. Real fantasiada, porque de racionalidade já estou cheia. Já tem outros sendo chatamente racionais por aí.

Se eu sou taça, meu desejo é meu bastão, minha palavra é minha espada, meu texto pronto meus pentáculos, minha obra a quintessência. alquímica, transformo todas as minhas paixões em mundos inteiros. Se não posso com o que me foi dado, eu mesma crio. Utilizo do mundo real para criar meus próprios mundos. Crio minha própria justiça, minhas próprias leis. Num dos textos eu comento, toda alegre e esperançosa, como uma boa universitária de primeira viagem, que o que mais queria da vida era escrever. Pois, estou sendo. Não quero apenas transmitir a minha dor, como Patrick Bateman. Mas todas as maravilhas que enxergo do mundo e que, portanto, sou. Como pode ser real e certo um mundo onde cada um enxerga por uma perspectiva? Não estamos todos lutando para impôr nossas verdades?

Se odeio com razão, eu não sei. Mas odeio com motivos. Odeio quem oprime, odeio quem mente, odeio quem trai. Não só àquele que faz tudo isso a um desavisado, um despossuído, um desconsolado. Mas também odeio o desprezo pela vida, o desrespeito pela morte. Ambas - que são apenas uma - têm em seu estômago, seu meio termo, o maior presente: o existir, e o deixar de existir. E vejo, desde pequena, tanto desperdício de mundo. Tanto desperdício de vida, tanto desperdício de sentir. Talvez minha maior aflição seja não conseguir sentir que as pessoas sentem. Mas, quando eu sinto, eu sinto tanto! Talvez meu maior autoritarismo seja querer obrigar as pessoas, na base do grito - de compensação, por eu tanto sangrar -, a aproveitarem a suas vidas ao máximo, no limite, na borda, para além de suas inteirezas.

Talvez eu seja uma rebelde aprendiz do tempo. Nessa minha frieza saturnino-aquariana, andando nos limites do Tempo, como o equilibrista de Paul Klee, rebelde não por aventura e uma simplória violência, mas por toda a escassez que assola esse mundo, toda a frieza, falta, secura e desrespeitos, e injustiças. Rebelde, não pelo aguadeiro, mas rebelde por querer ter pressa (desobedecendo o tempo das coisas) em ver, em sentir o florescer de uma alma em corpos tão calados, tão apáticos, tão gentis e tão tímidos. A vida (a Morte, a Vida-Morte, ou Vida-Morte-Vida) não espera, ela caminha na estrada dos destinos de cada um de nós, e apenas nos pede uma simples companhia. E nós, tantas vezes, ficamos parados, indecisos, conformados, em nossos cotidianos, em situações que achamos que "merecemos" de "bom grado", sem almejar nossos algo mais. É nosso direito algo mais. E nosso dever a luta pela vida. E eu enlouqueço quando farejo apatia, conformidade. A fera que há em mim não poupa nem os inocentes, às vezes. Espero que um dia poupe. Mas bicho selvagem por muito tempo perdido em outros devaneios, outras instâncias, recém-saído de uma apatia de anos - que até lhe fez esquecer-se de quem é a ponto de vasculhar vestígios de si no baú de memórias - tende a ferir, para não ser ferido. Fere em desespero de sentir o vento novamente passando por entre os pelos do corpo.

Nisso, todas as Helens que vim sendo concordam: desde sempre fomos doces, mas secas, feito rapadura. E, se maleáveis, como a batida, o melaço da cana. E, se líquidas, como a aguardente de cana: ainda assim rasgando. Vida para mim é isso, é na carne, é no vento, é na alma e no mais profundo de nós mesmos. Não é apenas um encostar. É um atravessar. Se me rasga, se me atravessa, eu me sinto viva. Então superficialidades chegam a me ofender, muitas vezes. Eu sei que nem todo mundo suporta essa dureza, mas ainda não aprendi a não atropelar. Talvez eu nem queira alterar minha velocidade. Talvez esse arranque que eu dou seja um chacoalhão necessário para quem estiver na estrada.
Luc Besson - Leon: the professional, 1994
I like these calm little moments before the storm. It reminds me of Beethoven.
Gary Oldman's Norman Stansfield
Saturno, tão calado, tão liso e comportado ali no silêncio do vácuo. A gente vê imagens e lê sobre o planeta gasoso. Era meu segundo favorito na infância (porque sempre fui megalomaníaca e Júpiter era minha maior ambição). E ele representa o Tempo. Também silencioso... Invisível? Não. Saturno engole seus filhos. Engole até pedra. E o tempo nos engole. O tempo é visível sim: nas rugas, nas cicatrizes, nas experiências, no crescer dos narizes e orelhas, no curvar dos espinhaços, no branquear dos cabelos. Esse silêncio grita. Troveja. E eu me vejo muito nele. Agindo. Seus anéis nada mais são que poeira e outros objetos errantes, como luas de órbitas conflitantes e meteoros sugados para essa situação, todos se debatendo, se quebrando, se atropelando, se atravessando. E de longe, apenas um vinil, um disco tocando. Saturno é um gás de tempestades e auroras. É puro caos. E caos é ritmo. Em janeiro escrevi algo para me compreender, e a cada dia que passa me asseguro mais que
Sou um astro hostil, de muitas tempestades com descarga elétrica, com anéis alimentados pelo atrito de luas e asteroides, de rotação rápida no próprio eixo, e translação lenta, imperceptível, que de longe me faz aparentar pacífica e silenciosa, quando na verdade minha natureza é bélica. Tal qual Saturno.
Mas é claro que sou muitas outras coisas. E sigo assim, sendo.

tudo o que citei 


BEETHOVEN, Ludwig van. Symphony No. 7 in A Major, Op. 92: II. Allegretto. 1812.
BESSON, Luc. León: the professional. 1994.
CARDOSO, Pedro. O amor cristão. 2019.
CARLI, Guilherme de. A questão da rebeldia no simbolismo de Áries e Aquário.
CAYMMI, Alice. Iansã. 2014.
FERREIRA, Ricardo. Paul Klee: visitando a exposição de um artista múltiplo no CCBB. 2019.
FLOYD, Pink. Live at Pompeii. 1972.
GALLO, Vincent. Glad to be unhappy. 2002.
GOYA. Francisco de. Saturno devorando um filho. 1819-23.
HARRON, Mary. American psycho. 2000.
KULT, Kimono. Hiding in the light. 2014.
LEE, Rita. Tão. 2007.
LISBOA, Cláudia. Ascendente em peixes: sensibilidade e silêncio. 2020.
SABBATH, Black. Planet caravan. 1970.
STEVENSON, Paul. Pompeii mosaic. 2009.
YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano.1951.

Escrito entre 10 e 12 de maio de 2020.
© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo