13.12.20

18. A Small victory

Amigos! Romanos! Conterrâneos! Emprestem-me seus ouvidos - dizia Michael Kyle no episódio do Homem do ano. Anos depois, no tinyletter, descobri que era uma alusão ao discurso de Julius Cesar, de William Shakespeare.

Por que digo isso? Senta, que lá vem história - mesmo, por favor. Essa bomba eu não aguento nem em mim mesma.


Eu tinha pensado, anos atrás - porque consegui transformar 30 dias em 3 anos de música -, em guardar esse dia para Under the bridge, do Red Hot Chili Peppers. Mas, man, a cidade que eu vivo definitivamente não é a cidade dos anjos. Nem dos caídos, porque tenho apreço pelo portador da luz. São Paulo para mim é completamente o oposto do que é Los Angeles para Anthony Kiedis.

Então, fuçando os videoclipes de Faith no more, uma banda que se parece, mas não é RHCP (eu diria que são luz e sombra) descobri que havia música da banda do ano em que nasci. Reservei um momento de minha existência para criar o gif acima, que é um Mike Patton extremamente - como sempre - sensual, num movimento que eu amo, e que só vi em Interstellar - pois muito específico de quando atinjo o êxtase musical, como um orgasmo, e não pelo que vejo, mas pelo movimento do som, como se eu fosse capaz mesmo de visualizar as ondas sonoras; sem falar nessa face meio caveiruda nos segundos finais, o que tem tudo a ver, por mais que não pareça nessa teia que estou tecendo.

Mike Patton foi meu casamento nesse mês de outubro. Nunca comemorei tão bem um mês das bruxas como em 2020. E olha que 31 de outubros têm me sido especiais desde pelo menos 2017. Foi meu casamento porque estão sendo paridos vários textos sobre Fantômas, um projeto que ele tem com outros incríveis metaleiros. Primeiro, no Querido Clássico, depois, no Projeto Átropos, ainda em pré-produção. Esse processo foi realmente um processo, e em diversas camadas - feito cebola infinita, uma das últimas adjetivações de mim mesma - eu me deparei comigo em Patton.

São coisas que nem elaborei direito, mas eu sempre fui conhecida pelo tanto de coisas que sei e costuro. É meu jeitinho. Só que é algo que contém tantas coisas que eu me perco e não entendo muito bem. Começou com desabafos nessa página em 2008, numa época que estava apaixonada por um professor da minha escola e ouvia muito John Frusciante. O John viaja. Tem umas falas dele sobre 4ª dimensão, vozes, física quântica. Aprendi a gostar de rock progressivo com ele. E me identifiquei com essa coisa pisciana meio enevoada e mística. Então vinha aqui e escrevia umas coisas aleatórias, que às vezes não entendo mais, ou vinha xingar alguém como sempre. Escrever era algo que eu simplesmente fazia. É algo que aprendi a fazer a partir dos três anos e nunca mais deixei. Papai brigava comigo de tanto que eu vivia com caneta e papel na mão. Então, por ser algo natural de mim, achei que era natural de todo mundo. Aí quando recebo elogios ou coisas do tipo eu faço cara feia num sentido de "oxe, não estou fazendo mais que minha obrigação".

Elio Petri's Investigation of a citizen above suspicion, 1970



Mas eu comecei a perceber, depois que fiquei tagarela com certos amigos e mando áudios que são palestras para Carol, que eu jorro demais, misericórdia. E nesse isolamento, estou comigo mesma no meu quarto, o que é viver de novo meus 19 anos. Não acho ruim ficar isolada, porque sempre fui um castor que se represa entre troncos bem escolhidos. Ruim é a doença e a mortandade, a política, a economia mundial. Enfim.

Nesse meu represamento, onde eu basicamente sou um Sean Connery no monastério de O Nome da rosa (ele ainda estava vivo quando rascunhei essa parte 😔), eu montei o Estúdio São Jerônimo (ainda antes da pandemia, enquanto estive na Paraíba), que é uma extensão da minha cabeça com instrumentos de artesã. É meu estado de materialização do universo que vive dentro de mim.

Cada um de nós é um universo, obviamente. Todo mundo tem de tudo dentro de si. Mas acho que pela primeira vez eu me incomodei com o peso que eu tenho pra mim mesma. Porque crio acordada, tenho ideias a cada minuto, escrevo, desenho, pinto e bordo - literalmente. E ainda tenho tempo de sonhar de noite. E são sonhos elaboradíssimos, às vezes três, cinco por noite. E ver Mike Patton ter TANTO trabalho produzido me fez me ver de fora pra dentro. Foi como se David Gilmour realizasse seu sonho de poder ouvir The Dark Side of the Moon pela primeira vez na vida, como se não o tivesse produzido, surpresa que ele jamais teve. Porque ver que Patton, além de Faith no More, canta solo, dubla personagens, fala (e canta) português, espanhol, italiano, se uniu às crianças de Heliópolis no SWU de 2011 - e eu dei aula para crianças de Heliópolis entre 2016 e 2019, o que me aproxima ainda mais dele -, criou Fantômas, Tomahawk, Mr. Bungle (pré-FNM), tētēma, fez parcerias, tem uma gravadora, a Ipecac records, e cada título de projeto tem um significado histórico (Fantômas é um criminoso de pulp fiction francesa criado em 1911; Tomahawk um machado indígena norte-americano, Mr. Bungle um personagem que eu definitivamente já pensei em misturar com Pink Floyd em cinco minutos, e Ipecac uma planta brasileira que induz o vômito. Fora as coisas que não cataloguei ainda.

Aí encontrei uma entrevista dele como vocalista do Fantômas - eu fiquei um mês pesquisando esse negócio -, onde ele explica o processo artístico que traduz tão bem esse caos mental que eu vivo. E ainda alinha duas coisas que amo que é o bizarro e o erótico, uma sensualidade pirracenta, mas muito elegante e suja, um misto de Steve Stifler com Paul Finch, melhores antagonistas de um besteirol americano.

Whenever I make a record I kind of put it in a box first. It's gonna sound kind of like this, or like that, or like that - and that's the way I can focus and actually do it. Otherwise... “oh that's cool and that's cool” - and there's all these ideas that are floating around in the air, unless you put them in a... in a bubble and paint them a certain color and put them in a... you know, a context, they don't make sense. So, yeah I do that pretty much every time I make a record.

Sempre que faço um disco, eu meio que o coloco numa caixa antes. Vai soar desse, ou daquele, ou de outro jeito... e é assim que consigo focar e fazê-lo. Senão... "ah, isso é legal, e isso é legal".... e há todas essas ideias flutuando no ar, a menos que você as coloque num balão e lhes dê alguma cor e as ponha num contexto, elas não fazem sentido. Então, sim, faço muito isso toda vez que gravo um disco.

Por mais que eu escreva - e é muito, mas nunca o bastante -, é muito difícil materializar minhas ideias. Porque eu as alimento e recrio na mente, e com a terapia descobri que, por mais prolixa e boa de discurso que seja dentro de minha cabeça, aquilo não faz muito sentido até sair pra fora do corpo e tomar forma, até me encarar. Eu me enxergo no outro. Em pessoa e criação. Precisa existir fora de mim, para eu aceitar que existe dentro de mim. Não, já existe tanto dentro de mim, que precisa existir fora, para eu poder tocar, mexer, mostrar. Mostrar, é isso! Vira e mexe digo aqui que tudo o que faço é para poder traduzir as maravilhas que enxergo com meus olhos. É a minha versão do mundo. E ela precisa ser considerada.

Conheci um rapaz essa semana, que acredito que vá ser amigo, que, tentando entender o porquê de eu me importar tanto com pedidos de namoro, tanto quanto a atividade namorar (namorei, não fui pedida em namoro, apenas aconteceu e eu vivi e deram nome à coisa por maioria de votos), soltou algo como "você precisa que estabeleçam um nome para a coisa que você está vivendo, para se tornar um compromisso consigo mesma". Dias depois eu pensei que não é somente isso, mas também é um contrato, que precisa ser estabelecido com garantias. Dar nome aos bois é tornar real o que já é subjetivo, é se importar com as minhas decisões e não passar por cima delas, é considerar meus quereres e me pedir permissão, sem decidir por mim. Parece que foge um pouco do Patton, mas não: meu ser onírico precisa de materialização. Minhas águas precisam de uma margem de segurança. Afinal, água possui um formato porque se adapta ao espaço que a comporta. Sem isso, é oceano, é maremoto, é chuva, escorre pelos dedos.

 For me it's all about parameters, putting things in little specific places, storing them on the shelf, and going to them when you need them.

Pra mim é tudo sobre parâmetros, colocar as coisas em pequenos lugares específicos, guardando-as na estante, e indo até elas quando necessário.

Materializar é dar limites. Um rosto, um corpo, uma roupa. Talvez a verdade nua e crua que eu desesperadamente busco ainda seja uma coisa tão disforme que a única possibilidade de ela acontecer é através das máscaras mesmo. Das faces todas do lobo da estepe. Afinal, para nós historiadores, a verdade absoluta não existe, o que existe são fragmentos de verdades individuais, coloridas ou não, filtradas de dentro de cada corpo para fora de diversas formas. A verdade é uma ideia. Ideias não possuem rosto, se adaptam a rostos. E, sobre isso de ideia, eu tento compreender um quebra-cabeças que quebrou - mais uma vez - meu coração nesses últimos dias, quando descobri que alguém que eu pensava conhecer simplesmente não existe. E o que mais me dói não é - mas também é, e é muito - a mentira criada. É pensar que tudo o que parecia real, material, que tinha corpo, forma, olhar, jamais existiu. É um retrocesso, um oposto do ideia-corpo. É descobrir o corpo como ideia. É tão complexo que não consigo explicar aqui, mas vou tentar pensar em como dizer.

James McTeigue's V for vendetta, 2005

Só que foi bom eu chegar a esse nó, porque esse mesmo novo amigo disse que eu consigo "tornar sólido coisas abstratas" e que sou sinestésica. Sinestesia é uma palavra que me definem desde 3 de setembro de 2011 e sim, eu sou assustadoramente boa com datas. Sou quase uma Carrie, e talvez por isso goste tanto de Stephen King. Mas voltando à matéria. É estranho pensar nisso no meio de uma sociedade cada vez mais fluida e digital. Sinto que a mente e a vida virtual serão uma máxima das próximas décadas ou séculos. E eu vou em direção contrária a isso.

Um velho mundo, né? Talvez a raiz desse nome esteja no fato de eu amar tudo aquilo que já não é. Sou saudosa de tempos e lugares em que não vivi. O estranho me apetece. Astrologicamente tudo isso faz sentido no eixo ASC-DC Peixes-Virgem, onde o planeta que rege um está espremido na pequena casa do outro, o que faz eu olhar para mim mesma do lado de fora: um peixe que tem como seu rei, o enorme Júpiter, na casa oposta, do minúsculo Mercúrio. Vamos imaginar que seja o peixe pescando o homem. É isso que eu sou. Talvez um astrólogo leia isso e diga "hã?", assim como quem não acredita nos astros provavelmente vai dizer: "hã?". Um dia eu desenho. Nem Clarice entendeu o que quis dizer em O Ovo e a galinha.

O que quero dizer é que o quê? Que não é o que não pode ser que não é. Se estão todos indo do ponto A para o ponto B, eu vou de volta para o ponto A, e vice-versa. Ou, posso até ir junto para o ponto B, mas de costas, olhando em direção ao ponto A. Porque eu não gosto de unanimidade, toda ela é burra e eu acho isso uma máxima verdadeira, mesmo que verdade completa também seria uma unanimidade, portanto...

Um velho mundo é respeitar tradições de modo que se crie um elo entre passado e presente. Eu acho que minha missão na vida não é apenas criar, mas manter. Criar a partir da manutenção. Na vida nada se cria, por mais que a juventude seja prepotente demais para acreditar-se inovadora. Não seríamos hoje sem os que foram ontem. Eu preciso olhar para o passado porque é ele quem responde meu presente. Não só para eu entender onde estou e o que eu vim fazer aqui, mas para poder aguentar esse fardo que é viver entre vocês. Nada pessoal. Só com alguns fellas. Listando alguns dos meus trabalhos atuais, eles são de fato elos de uma corrente, ou retalhos de uma colcha, que se puxam, que se completam. Um quebra-cabeças de referências.

O Estúdio São Jerônimo é uma criação de quase um ano que ainda não acredito que eu criei. Foi a coisa mais despretensiosa, audaciosa e, ao mesmo tempo, ambiciosa de toda a minha indústria vital. É o meu quarto. E o que crio com papéis. Eu escrevo e desenho, né? E comecei a criar o objeto onde escrita e desenho tomam forma: o caderno. A pandemia me desacelerou e eu não pude ainda chegar ao ponto máximo dessa locomotiva em questão econômica, mas eu sei que é algo bastante sólido e que vai durar. Porque eu vou fazer com que dure: esse estúdio sou eu até os ossos, até o talo. E é um pai mais jovem de Um Velho Mundo.

Um Velho Mundo que sou eu, há tantos anos. Talvez o Saturno vencido pelo Júpiter que é o estúdio. A era de ouro de minha escrita. O titã que pariu deuses. Se eu não passasse a ver a minha arte como arte, e, principalmente, minha escrita como arte, eu não estaria aqui hoje. Devo muito a este blog e a todos os que me leem, do primeiro ao último, do conhecido ao anônimo. Gracias. A menos que haja algum inimigo aqui me lendo: não devo nada a você, você que se foda pra lá (é melhor prevenir, né?)

John Melhuish Strudwick - A Golden thread, 1885

Átropos. Esse daqui eu não vejo com corpo ainda. Apenas as veias. O que é engraçado, porque ele falará de Delìrivm còrdia, do Fantômas, que é uma música de mais de uma hora que representa uma cirurgia num corpo humano. E Átropos, que é a moira que corta o fio da vida (a parca Morta), aquela costureira que dá o ponto final e estabelece o formato da costura. A mais materializadora, talvez, pois está em suas mãos a ponta oposta àquela que a Clotho (Nona) começou a fiar. Clotho, Laquesis e Atropos são três moiras, na mitologia grega, responsáveis pelo fio da vida. Clotho (Nona) inicia o fiar, representando o nascimento, Laquesis (Décima) mantém a fiação, representando o período em que se vive, e Atropos (Morta) estabelece o ponto final e corta o fio. Num processo artístico é o processo de criação, do começo ao fim.

Querido clássico é um mundo vizinho que com muito gosto fui chamada por Mia para fazer parte. E ele tem uma missão muito bonita e irmã de todos os meus trabalhos: mostrar o clássico, o passado, com gosto palatável para as pessoas. Mostrar que nem tudo é o agora ou o fácil. O antigo e o difícil valem a pena, porque a alma não é pequena. Minha solidificação do abstrato, é a margem que transforma água em rio. Não para ela ser represada, mas para correr e desembocar lá no fim do mundo. É dar sentido à correnteza de pensamentos e sentimentos. Ligar o nome à pessoa. Juntar o lé com o cré. Eu gosto tanto de entender (e isso nem sempre é uma dádiva), que preciso transformar o entendimento em algo saboroso para os outros. Quero viciar as pessoas em ter pulga atrás da orelha. Porque eu sou a mosca, meu irmão.

I just wanted, you know... basically take a lot of cliches and little things that I learned playing in noise bands when I was a kid and, and... and organize in a way that makes people think a little bit, so if... if it does stop you in your tracks or, if you're forced to look at it and... think a little bit, then yeah, I think that's... that's about the best we could do.

Eu só queria, basicamente, pegar um monte de clichês e pequenas coisas que aprendi a tocar em bandas barulhentas quando eu era jovem e organizar de um modo que faça as pessoas pensarem um pouco, então se isso te faz parar no teu caminho, ou se você é forçado a olhar e pensar um pouco, então, sim, penso que é o melhor que podemos fazer.


18. Uma música do ano em que você nasceu
If I speak at one constant volume
At one constant pitch
At one constant rhythm
Right into your ear
You still won't hear

Leia mais textos do 30 day music challenge!

26.9.20

Eu não sou besta pra tirar onda de herói

Alan Moore & Dave Gibbons's Watchmen IV, p. 19
Às vezes eu venho escrever aqui sobre temas que nem queria, mas eles vão acontecendo na minha vida como nós em um novelo, é tão engraçado.

Desisti de comentar minhas opiniões políticas, né. Na verdade, eu desisti de comentar de um modo muito padronizado que nossas gerações Millennium e Z comentam, seja em infinitos comentários nas redes sociais, ou em reels e tiktoks. Apaguei o twitter três vezes nos últimos 10 anos sempre pelo mesmo motivo, e não tenho a mínima vontade de voltar. Eu decidi me isolar de um modo parecido com aqueles hippies do apocalipse em filmes de fim do mundo. Na verdade, decidi ser quem sempre fui, né? Uma pária.

Roland Emmerich's 2012. Woody Harrelson's Charlie Frost (juro que não lembrava que essa cena continha um vulcão hahaha)

Acontece que, há algum tempo já, a palavra "herói" vem flutuando na minha frente, em todas as situações possíveis. Aproveito para escrever esse texto hoje, um dia após a chegada do meu bem mais precioso do momento, que é a HQ de Watchmen.

Lembro da desmistificação dos heróis nos tempos da faculdade. Tem um livro que despe a imagem de Tiradentes, da Justiça, da República, que é do José Murilo de Carvalho - A Formação das almas: o imaginário da República no Brasil. Faz tempo que li, e não inteiro, mas jamais me esqueci de como nossa República foi uma criação de uma elite militar e liberal, e por "liberal", não se faz menos racista. Não sei se minha explicação está atualizada, pesquise se você quiser, porque eu desisti da Universidade também hahaha. Me lembro do professor comentando como Tiradentes foi posto como um coitado à imagem de Jesus Cristo, que foi desmembrado e exposto em praça pública, um herói da independência com fama tardia. Enfim, essa historiografia do 19 é uma bagunça, uma maquiagem, e também o registro e a face de uma época. É e não é real. Mas não é isso que vou comentar. O que vou comentar é que fiquei com esse anti-heroísmo na minha cabeça. Consigo admirar personagens históricos, literários, mas sem nem fazer pouco, nem muito caso. São pessoas. Ou personagens. Ou pessoas-personagens.

Com o propósito de despir também em praça pública essas criações do passado, muitos pesquisadores e estudantes criaram discursos tão rasos quanto os que eles queriam criticar, fazendo com que muitas obras do passado fossem rechaçadas, sendo que, querendo ou não, elas têm valor. Histórico, né. Historiador é detetive, trabalha com fatos, feitos. Tudo é precioso. Claro que somos e devemos ser críticos, mas uma coisa que detesto na minha profissão é uma ironia pobre cozida e reproduzida no meio acadêmico. Virou piada chique dizer que o Imperador montou num jumento e estava com dor de barriga, e que o quadro do paraibano Pedro Américo era uma "men-ti-ra". Não, né gente. É uma interpretação artística que significa algo subjetivo, simbólico. Tem a ver com onde ele estudou, que foi na Itália, com quem encomendou a tela, com a mensagem que queriam passar. É tipo a gente hoje fotografando para o instagram com milhões de efeitos e objetos para compor a imagem: quem lê com pisca-pisca aceso, bonequinhos e folhas secas no chão? Espero que ninguém. É bonito e tudo mais, mas é tão criação quanto.

Mas também essa não é a crítica que quero fazer, há! O que eu acho engraçado é que (isso não é o meme) tanta gente se mostra diametralmente oposta a criações do herói do passado, ou a padrões de pensamento, que criam um espelho desses padrões e crenças.

Desde o tema já bastante discutido - e talvez já esquecido - da iconoclastia em obras públicas feitas em homenagem a figuras assassinas e opressoras, a palavra "herói" tem me assombrado. Porque vi pipocar postagens do tipo "verdadeiros heróis que deveriam ter tido estátuas em sua homenagem". Espera: até ontem herói não era uma criação, e os discursos pendiam para "não existe herói, isso tudo é criação de um ser perfeito super-humano ou não-humano que salva o dia feito as Meninas superpoderosas"?

E não parou pelas postagens. Estou lendo um livro muito bom sobre personagens brasileiras negras que não tiveram suas histórias contadas, mas já torci o nariz para cada momento em que li heroína, heróico, herói. Em algum momento da vida, e isso claramente é fruto de situações particulares e públicas, eu fiquei avessa à ideia de herói. Não só por causa da aula do Tiradentes. Nem porque é necessário destruir o pedestal do opressor sempre que possível. 

Meu negócio é o seguinte: pessoas são pessoas. Com feitos admiráveis, com feitos terríveis. Como a Jane Austen, que conversei hoje com a Mia como ela é boa escritora, mas aparentemente destruiu a imagem do gótico escrito por mulheres ou algo do tipo*. Ou o H. P. Lovecraft, que é o escritor de terror mais saboroso que já li, mas era racista, machista, entre outros -istas, o que combina com sua posição temporal, de gênero e geográfica, compreendo, mas nem por isso é menos errado ética, moral, politicamente. E, por H. P., por que não falar da transfobia da J. K. Rowling? Que mulher chata, meu deus do céu. Detesto ela desde quando decidiu que jamais continuaria a saga do bruxo-mimado-com-pais-horríveis, mas a cada semana inventava uma curiosidade sobre um personagem no twitter e dizia que sempre pensou nisso, só não disse antes. Enfim, a lista de pessoas com pensamentos terríveis e artes maravilhosas, ou vice-versa, é extensa e interminável, porque nenhum deles é Deus, muito menos herói. Mesmo aqueles que contribuíram bravamente para movimentos sociais e lutas armadas no Brasil e no mundo. Vocês acham que eu gosto do cangaço e da União Soviética porque sou iludida e acredito no suposto heroísmo de Virgulino Ferreira e Josef Stalin? Nope


Eu sei da violência, dos abusos, dos assassinatos. Não necessariamente concordo, e dizer que discordo seria mentir para mim mesma. Mas aconteceu e o tempo não volta. Nem quero que volte, amo ficção científica, mas sou avessa à máquina do tempo (porque tudo pode piorar). Tem um trecho de livro A Era dos extremos do Eric Hobsbawm que amo compartilhar há muitos anos:

A principal tarefa do historiador não é julgar, mas compreender, mesmo o que temos mais dificuldade para compreender. O que dificulta a compreensão, no entanto, não são apenas nossas convicções apaixonadas, mas também a experiência histórica que as formou. As primeiras são fáceis de superar, pois não há verdade no conhecido mas enganoso dito francês tout comprendre c’est tout pardonner (tudo compreender é tudo perdoar). Compreender a era nazista na história alemã e enquadrá-la em seu contexto histórico não é perdoar o genocídio. De toda forma, não é provável que uma pessoa que tenha vivido este século extraordinário se abstenha de julgar. O difícil é compreender.

Daí que estou fazendo um curso de empreendedorismo no Sebrae - sou expert em cuspir pra cima e receber o cuspe bem dentro do olho, pois detestei sempre tudo relacionado ao tema - e é óbvio que eles pregam esse discursinho Luciano Huck meia-boca de que a superação de um pobre que se deu bem na vida é coisa de herói. Aí a pessoa pobre que vê uma coisa dessas acha que "ah, é porque ele nasceu com a bunda virada pra lua; ele nasceu pra isso; podiam ter mais pessoas assim no mundo".

Lembrei agora do tempo em que eu trabalhava no museu e achavam uma pena não existir pessoas como o Conde (ele era empreendedor do 19), mas ninguém pensava (e nós tentávamos questionar isso) que elas podiam empreender nas suas vidas cotidianas, seja num estabelecimento ou num simples conselho ou abraço dado a quem precisasse de amparo. A gente sonha com pessoas impossíveis, e com isso se acha incapaz. Todo mundo é capaz de muita coisa. O que caga tudo é que todo mundo tem oportunidades diferentes (muita ou nenhuma), questões psicológicas tratadas ou pioradas, falta ou excesso de incentivo, descrença em si mesmo ou no outro, enfim, uma teia de empacamentos. E essa ideia de herói, pra mim, seja ele um opressor ou um sobrevivente, é balela, ajuda a empacar os "não heróis".

E é por isso que eu gosto de Watchmen. Alan Moore pegou o arquétipo do herói dos quadrinhos e meteu numa HQ cheia de nuances (que vocabulário mais intelectual Santa Cecilier), numa história onde os heróis existiam de fato numa América de Guerra Fria, mas despidos dessa aura de Super Homem e protetores do cidadão comum. É tudo um bando de gente errada, anticomunista, violentos até dizer chega, niilistas talvez, assassinos, que se deparam com mais uma mentira, mais um mito de criação do herói (nesse caso de criação de um bode expiatório para um genocídio), que desemboca numa falsa paz entre oriente (socialismo soviético) e ocidente (capitalismo). Eu AMO cada pedaço dessa história. Porque são antiheróis. Porque é desesperadora. É uma piada. É uma mentira! Como se aceita uma paz mentirosa, meu deus do céu? Que coisa horrível! Parece pesadelo sem fim que a gente vê tanto em seriados, filmes, livros, ou na vida mesmo. Aquela coisa perfeita, moldada, com final feliz. Não. A vida não é isso.

Enfim, eu só queria dizer que (busquem conhecimento):

Eu não sou besta pra tirar onda de herói
Sou vacinado, eu sou cowboy
Cowboy fora da lei
Durango Kid só existe no gibi
E quem quiser que fique aqui
E entrar pra história é com vocês

Não é que eu esteja dizendo que não devemos admirar feitos incríveis de pessoas que nos inspiram a ser melhores e lutar pelo que acreditamos. Nós devemos admirar feitos incríveis de pessoas que nos inspiram a ser melhores e lutar pelo que acreditamos. O que nós não deveríamos é pedestalizar as pessoas pelos seus feitos. Muita coisa aconteceu, ou não aconteceu, para aquilo ser extraordinário. Não é porque a pessoa é um iluminado por Jesus, ou "perfeita, sem defeitos" (o vocabulário da nossa contemporaneidade é o pior, credo). Mas o feito daquela pessoa, o trabalho dela é útil para nós termos como exemplo do que fazer ou mesmo do que não fazer daqui pra frente. Isso é História pra mim: conhecer o que aconteceu, pensar e agir no agora a partir dos exemplos bons e ruins do passado, e criar um futuro cada vez mais satisfatório para nós e os próximos da nossa maldita espécie, e das outras espécies também, coitadas, que têm que conviver com essa droga de Homo sapiens sapiens de nada.

Tem uma frase que detesto, que muita gente usa inclusive. Mas que me decepcionou quando vi sair da boca de um professor que gosto muito: "quando eu crescer, quero ser como fulana". Eu não, oxe. Quando eu crescer, quero ser como eu! Nasci eu, pra que diabos quero ser como o outro? E daí se o outro tem 300 páginas de currículo? Mansões, dinheiro, iate, mulheres?

Minha filosofia de vida sempre foi descobrir quem sou, o que vim fazer aqui, e contribuir com minha particularidade para a sociedade em que vivo. Por causa dessa bobagem de herói, fiquei anos aprisionada num suposto dever de militar com a minha geração de forma incansável e inumana contra o maldito capital e suas mazelas eternas. Claro que minha maior utopia é um misto de sociedade comunista com corporações de ofício medievais, mas eu nunca, jamais acreditei que veria o comunismo posto em prática enquanto eu viver. Vivo em sociedade porque as cartas jogadas na mesa são essas, mas eu não sei ser da multidão, não sei ter sororidade, porque acho falso, imposto (inclusive, pelo amor de deus, evitem me chamar de mana, não te dei intimidade pra isso), não sei gostar de classe média, mesmo a progressista (e nem pretendo). Não sou besta pra tirar onda de herói, é isso. Deve ser por isso que meu logo aqui é uma ovelha. Pensa que eu sei porque tem uma ovelha ali em cima? Eu não sei não! hahaha. Só amo a Revolução dos bichos. Mas dos animais, ironicamente amo os porcos. As ovelhas pra mim são a massa balindo encaminhando-se para o matadouro. Aquela ovelha ali deve ser a desgarrada.

Engraçado que Watchmen ia ser meu TCC esse ano. Mas acharam muito pouco "útil" para a sociedade brasileira escrever sobre uma HQ britânica. Porque "o que você poderia acrescentar numa pesquisa que os próprios conterrâneos do Alan Moore não já sabem?" - ouvi, há um ano e meio. Só ontem me veio em mente que eu poderia ter sustentado minha ideia e ter dito "bem, eu acrescento um pensamento em lingua portuguesa brasileira e trago essa crítica fantástica a tantos símbolos e situações sociais, políticas e econômicas que moldam nossas gerações pelos quatro cantos do mundo, usando um objeto popular e de lazer como ferramenta política. Mas meu tempo é outro. Slow ride...

Sei lá, eu não consigo ter paciência pra humanidade justamente porque é tanta besteira no meio de tanta coisa linda, eu fico biruta com isso. Agora eu vou embora, porque esse tema me ferve tanto que eu ficaria dias elaborando sobre cada parágrafo escrito. Quem sabe não vira uma tese de doutorado um dia, né?

Mas fica o recado, que é bem Pitty: seja você, mesmo que seja bizarro. Não acredite em meritocracia, mas também não desista de sonhar e, principalmente, agir, na medida do possível. Lutar, sempre. Viver é uma luta. Só se vive uma vez. Não acredite em heróis, não vale a pena. Isso é uma das diversas maneiras de hierarquizar, tornar exclusivo, extraordinário, impossível. Os bons feitos são ferramentas e combustível para mais boas ações, e não algo para se babar como objeto intocável num museu. Inclusive: os objetos dos museus são para conhecimento, não para ostentação ou baixar ainda mais a autoestima dos cidadãos comuns. Trate tudo com respeito, mas não seja subserviente, nem subestime - ou superestime, o que é muito pior - algo ou alguém.

Vive!

Meu deus, como amo - e sinto saudades de - um bar, uma briga, um carteado, uma sinuca, uma aguardente e toda essa ambientação de faroeste de cowboy!


* Aqui dois textos sobre Jane Austen e a sua sátira que vou ler depois, porque achei interessantíssimo: 

5.9.20

15. Sympathy for the devil

Skeet Ulrich's Billy Loomis at Wes Craven's Scream (Pânico), 1996
Não me responsabilizo por pessoas sensíveis ou menores de 18 anos que leiam o que vem a seguir. Contém spoilers, cenas de violência com gatilho - literalmente.
Please allow me to introduce myself
I'm a man of wealth and taste
I've been around for a long, long year
Stole many a man's soul to waste

Existem milhões de covers que eu poderia ter escolhido para esse desafio, mas agora são 20h29 de um sábado, estou burlando minha dieta gástrica com um vinho branco enquanto leio sobre knife play, e me deu uma vontade de ouvir Guns. Mas não ouvir Guns and Roses, ouvir um bom cover de Guns and Roses.

Eu amei essa banda no início de meu ensino médio, ouvia tanto quanto Bon Jovi e Metallica. Em parte aprendi a gostar na infância com minha prima Suzany, ou meus pais que amam Don't Cry (que tocava muito nas rádios na época em que nasci, então marcou a vida do meu velho). Em outra, porque nasci lasciva e sempre amei filmes como Exterminador do Futuro (You could be mine), passando as madrugadas assistindo ao Domingo Maior desde - no mínimo - meus três anos, sonhando ser a namorada de um Jean-Claude Van Damme jovem fumando charuto, um Mark Dacascos lutando capoeira contra uma gangue latina, um Brandon Lee vestindo uma calça de couro com um corvo no cangote em frente a uma janela quebrada ou um Jackie Chan de regata.

Tenho revisitado minha vida como uma estrangeira que ouve histórias de locais em uma cidade empoeirada de beira de estrada. Já disse em diversas sessões de terapia e áudios com Carol e Débora que minha alma é de um motociclista quarentão bebendo whiskey e brigando com socos e porradas em um bar de portinhola vaivém. Esse pensamento não é constante e volta e meia aparece para mim, talvez tenha a ver com o meu período ovulatório ou coisas que me esbarro por aí. Talvez seja o momento certo de aparecer, ou o que a música me traz. Sou muito sensorial e me desconfio uma empática, então o mundo me toca os sentimentos como o ar entra nos poros da pele. Moods.

Talvez quem me lê e me conhece tenha uma visão mais detalhada de mim - eu mesma não tenho. Mas vou recordando de mim nesses insights. Tenho um gif que guardo no coração, e é uma cena de Suspiria: uma cena em que o assassino da história esfaqueia uma das bailarinas e o coração pulsa, cortado. De primeiro, achei poético, um modo de ser literal com a metáfora. Um belo exemplo de 3 de espadas, em teoria e prática. Mas eu depois fui percebendo que é muito mais profundo do que isso: sempre me percebo apaixonada por aquilo que de primeiro me deixou em pânico, incomodada, com raiva. Minha paixão é agressiva, assim como eu.

Dario Argento - Suspiria, 1977
Just as every cop is a criminal
And all the sinners saints
As heads is tails
Just call me Lucifer
'Cause I'm in need of some restraint

Aí o último grau de entendimento bateu ontem, quando vi a capa do filme Pânico e me dei conta do real motivo de eu amar esses filmes. Além do medo causado, das boas histórias e atores. Eu sempre gostei de um vilão maluco. Não deve ser coincidência eu fazer parte da equipe do Filme-C, por mais que o gosto pelo terror seja completamente diferente no meu caso: é estreitamente ligado à sexualidade. E o Ghostface tem tudo a ver com isso. Não só por segurar uma faca - que agora sei que é uma bowie-knife Buck 120 -, mas pela própria vestimenta e a máscara de fantasma em desespero. É completamente sexy.

Um belíssimo exemplo de knife play que foi longe demais. Seria Pânico pornô?
You are the knife I turn inside myself; that is love. That my dear is love.
Franz Kafka
Foi no risca-faca que te conheci

Uma pessoa que a vida toda amou uma porradaria, tiros e facadas (pelo amor de deus não problematizem isso, não é alusão a nada). Que não é nem um pingo pacifista. Que tem como cena favorita de Kill Bill o topo do quengo de Lucy Liu ensanguentado caindo na neve. E ama assassinos de luvas negras dos giallos italianos. Que teve não somente uma, mas diversas visões da morte, seja ela com crânio de corvo ou com espada arthuriana. Que quase orgasma ao ouvir Belchior dizer "eu quero que esse canto torto feito faca corte a carne de vocês" (uma pena que o hipsterismo sudestino instagrâmico tenha destruído essa poesia). Eu sou o que sou, afinal.

Pouco me lembrava desse cover, mas um dia minha irmã comentou como gosta e fui ouvir. Era uma dessas semanas especialmente motociclistas de mim, então estava lasciva como um caralho. Aí a desgraça estava feita né? Até porque Axl Rose canta como se estivesse ejaculando e o Slash é uma perfeição de homem (e eu sua perfeita cover, quando enjubada).

Ainda bem que o ser humano é criativo e toda violência pode ser transformada em arte. Seja a arte musical, cinematográfica, plástica ou mesmo a impressionante e saborosa arte do BDSM. Como uma boa lua libriana, tenho estética e elegância suficiente para tal, e uno essa beleza selvagem em textos como esse.

15. a song that is a cover by another artist (uma música que seja cover de outro artista)

So if you meet me
Have some courtesy
Have some sympathy, and some taste
Use all your well-learned politesse
Or I'll lay your soul to waste, mm yeah
Matthew Lillard: um desejo de infância

Acompanhe todo o desafio do 30 day music challenge!

24.7.20

Realidade fantástica

Alejandro Jodorowsky's La Danza de la realidad, 2013

“Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico.”
Tzvetan Todorov [1]
Estou aprendendo a lidar com minha melancolia; quando conversamos conosco, é mais fácil evitar o tropeço. Tenho me dedicado ao oráculo, não como inocência, ignorância ou qualquer entendimento pejorativo que encontramos por aí, a torto e a direito. Comentários, muitas vezes, eles mesmos ignorantes. Oráculo para mim é literatura, terapia, alimento para a alma e para o espírito. Também predição, mas uma predição no sentido de observar bem os passos que são dados, porque há previsões disso e aquilo acontecer justamente por conta dos padrões de inconsciente coletivo que se apresentam e gritam, principalmente quando não queremos ouvir. Previsão meteorológica também não é 100%, mas nos faz ponderar se colocamos o guarda-chuva na bolsa, se pegamos um casaco, correto? E quantas vezes não nos deparamos com o sol escaldante numa tarde de inverno? Oráculo é para mim, portanto, a própria lamparina do eremita que ilumina apenas o pedaço de chão que nos cabe a pisada seguinte. E isso não é fatal, assim como a ciência também não o é. Entre o céu e a terra não há mesmo mais coisas do que pode suportar a nossa vã e vil filosofia?

Grigori Kozintsev, Iosif Shapiro's Hamlet (Gamlet), 1964
Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
Do que sonha a tua filosofia. 
Shakespeare [2]
Sempre fui uma menina onírica. Sonhadora. Passei minha infância brincando com espelhos, aos dois anos eu já respondia o palhaço no picadeiro de Solânea. Acreditava - e acredito - nas histórias folclóricas do meu pai. Assim como amava, era apaixonada por um livro de folclore brasileiro que ganhei da escola. Hoje em dia, acho que esse tema nem é abordado em sala de aula. Entendo a discussão sobre o assunto, mas não se apaga história: se conta e reconta, de diversos pontos de vista. Enfim.

Amante da mitologia, primeiro egípcia e depois grega - e hoje tenho vivido o contrário -, quando tinha raras oportunidades de ir à biblioteca da escola, era O Guia dos curiosos que eu ia buscar. Ou "Os melhores contos da mitologia" tal. Enxergava a matemática voando no universo: números voando no céu feito estrelas. 

Voltando ao lirismo. Assisti a um grupo de filmes em sequência esse mês que me fizeram chegar a um ponto da minha vida que eu nem tenho palavras para dizer. Mas eu chorei de amor, puro, desinteressado. E em todas as vezes era amor por mim. Não tenho autoestima baixa, e se tenho, nego. Mas não creio que tenha. Tenho, na verdade, alguma trava que me impede de desabrochar como deveria. E esses filmes me ajudaram um pouquinho.

Nunca havia assistido aO Mágico de Oz. Já li: lembro de ter o livro em mãos na sala de espera da minha dentista de infância, há uns sete anos. Depois doei o livro, adaptado, numa feira de troca na biblioteca da Etec, onde consegui um catálogo de Edvard Munch. Mas nunca havia sido uma paixão, ou uma vontade. Isso que O Mágico de Oz é a maior personificação do Pink Floyd nos cinemas para qualquer um, por mais que não tenha exatamente a ver, apenas suposições de fãs. Até hoje não assisti o filme sincronizado com The Dark side of the moon, mas consegui assisti-lo normalmente essa semana. Eu amei. Muito. Ri demais com aquele leão medroso, que me fez sonhar que eu fugia de leões, medrosa. Acordei gargalhando involuntariamente no dia seguinte, e rio só de pensar. Cada personagem, cada ator daquele filme... sei lá, é tão bem feito que nem tenho o que comentar. Uma obra de 81 anos extremamente melhor à enésima potência que qualquer filme caríssimo computadorizado dos dias atuais. Para mim, a coisinha mais linda é Judy Garland chorando feito menina. Minha psicóloga acha curioso o peso que eu dou às lágrimas, principalmente infantis. Acho poético demais.

Victor Fleming's Wizard of Oz - Judy Garland, 1939
Birds fly over the rainbow.
Why then, oh why can't I?
If happy little bluebirds fly
Beyond the rainbow
Why, oh why can't I?
Harold Arlen, E.Y. Harburg

O filme seguinte foi La Danza de la realidad, de meu ocultista favorito - e não somente isso -, Alejandro Jodorowsky. Mesmo entre os tarólogos ele é mal visto, pois, assim como na chata academia e na sociedade civil, há algo que me irrita profundamente ultimamente: o ceticismo e racionalidade pesados demais para a minha cabeça. E aqui volto um pouquinho ao princípio, me costurando à vida do próprio Jodô. Se não quiseres spoilers, vá assistir ao filme, e depois volte. Cinematograficamente, Alejandro Jodorowsky teve um pai extremamente autoritário, de cabelos pretos penteados para trás, e bigodes pretos. Assim como o meu pai. O pai de Jodô tinha devoção por Stalin, assim como eu (na verdade, mais ou menos). Na verdade, é isso mesmo. É que é complicado, e eu acho que tem a ver com os mesmos dramas de Jaime e Alejandro, que foi a poda dos sentimentos de uma criança, que se desenvolveu como pôde, e no nosso caso foi demonstrar uma força hercúlea de arrancar dentes sem anestesia (no meu caso teve muita anestesia e ninguém me obrigou, somente eu mesma, mas quantas pessoas arrancam quatro sisos não nascidos um atrás do outro, numa mesma cirurgia? - Eu sou desse grupo, comente como foi seu caso). A poda de Alejandro começa por seus cachos dourados. Depois, amizades e afeição aos oprimidos - lembrando que seu pai era um comunista, daqueles de cantar A Internacional, mas que chutava os mineiros amputados que o filho coçava as costas e abraçava.

Meu pai não era stalinista. Meu pai é bolsonarista. A grande sacada de Sara, a mãe-personagem lírica e maravilhosa de Alejandro, é compreender - porque se compreende com o coração, e não com a cabeça - o drama do marido árido: tinha Stalin como dios, Ibañez, presidente militar chileno, como passion. Três bigodudos em telas, um oposto do outro, todos iguais. Pegando fogo. Melhor forma simbolista de matar um período da vida: transmutar tacando fogo. Amo. Fogo é espírito, é ação. Atitude. Enfim, Jodô poderia ter sido um Jaiminho - não o do Chaves - se não tivesse esse simbolismo todo dentro de si. A vida dele (a real também) foi muito dura, não importando aqui se mais ou menos dura que outras, porque o foco não é esse. Sara fez o marido entender que se endurecia e perdia toda a ternura ao admirar dois bigodudos barra pesada. E eu entro nisso. Stalin é um fascínio para mim, não só pela beleza (convenhamos que Lenin e Trotsky eram horrorosos, e Josef um galã). Não vou comentar questões políticas porque: foda-se. É um fascínio independente de concordância ou discordância. Meu marxismo real se atém a Marx e Engels, porque com eles não tem erro. Os outros são história.

Mas o que me liga a Jaime e a Jodô é que essa figura de poder é algo que buscamos desesperadamente, porque assim nos foi imposto. Como se isso fosse um ideal de força e hombridade. Esses pais vestiram capas de uma falsa macheza, que é só uma meninice rabugenta. Não houve real amadurecimento, por desespero para amadurecer. Quanto mais buscaram, menos conseguiram, como alguém que corre desesperadamente por um corredor que só cresce. Tenho tentado me soltar desse redemoinho, e o simbolismo tem me salvado. E ver Alejandro Jodorowsky fazendo um filme tão irreal, que se fez absolutamente realista para mim, só provou o quão anti-realidade eu sou.

Não anti a realidade em si, porque senão nem aqui eu estaria. Mas vivo numa balança que tenta se equilibrar sempre entre mundos. Me vejo marginal, por não estar em nenhum círculo, e por evitá-los a todo custo. Mas também estou no meio. Sou centralheaven, no fim das contas. Então, até por questões do espírito, de personalidade, seja lá o que for: não consigo ser extrema de nada por muito tempo. Sou andarilha. Detesto caixas, bolhas, paredes. Como menestrel, como poderia eu viver lá ou cá, se posso viver lá e cá? É sabido por diversos artistas, psicanalistas, espiritualistas, nada menores que os cientistas, que o que vem de dentro é tão necessário quanto a razão. Então, por isso tenho negado essa falsa realidade a que se prendem os acadêmicos, os não acadêmicos, os ignorantes. Ignorantes no sentido de ignorar algo que não vivem, e tecer opiniões precipitadas. Todos nós usamos sabedorias da terra em algum momento da vida. Assim como nos refugiamos na arte para não cometermos suicídio. E a arte é expressão humana do que vem de dentro, e um de dentro que vem de fora, porque temos aqui, finalmente, uma dança da realidade: o que a sociedade nos causa, faz com que respondamos a ela de algum modo particular. E nossa resposta é uma ação que tem como reação o próprio mundo. Um perfeito ouroboros, uma roda da fortuna. E isso é tão Camusiano. O Mito de Sísifo, de Albert Camus, fala sobre esse teatro que é o mundo, dos atores que somos nós, dessa tensão entre nós e ele. Porque buscamos, no mundo, respostas, e recebemos silêncio. Então, criamos nossas respostas, e isso é O Absurdo. A esperança é uma afronta a essa "realidade" que nos é duramente jogada na cabeça. E a minha esperança é circense!
Esse texto está agora naquele momento épico, como uma música que vai se desesperando ali do meio para o fim. São tantas coisas que posso me perder, mas é assim que me encontro. Passei anos de minha vida rejeitando o circo, quando na verdade tudo me leva ao picadeiro. Meu primeiro conto é num circo latinoamericano. O Auto da Compadecida é narrado por um palhaço, originalmente. O que é Chespirito? Os Trapalhões, que assisti com paixão por toda a infância? Monty Python flying circus? Pink Floyd live at Pompeii, num anfiteatro? Um menestrel sem público é o que? O que é uma Helen sem ouvintes, sem leitores? É uma Helen llena de nada.

Me comunico por metáforas, alusões. Me ponho nos personagens. Me achava Inaura, a que se perde em paixões, com ares de Lisbela, a que sonha belos-amores-fera cinematográficos, quando também sou Leléu. Esse viajante de caminhão por cidadezinhas interioranas, se transformando em diversas personas, utilizando diversos disfarces, nomes, máscaras. Se apaixonando e sumindo toda santa vez. Não permanecendo, cortando laços. Não sei dizer até logo. Meus "até logo" são verdadeiros adeus. Porque sei que, quando uma novela acaba, nesse Decamerão que é minha vida, ela realmente acaba. Leléu é o menino sonhador que se perdeu da família em uma noite em que passou um zepelim pela cidade. Absorto, absorvido pelo gigante nos céus, correu por ruas, areia e mar sem olhar para a terra nem para trás, mas olhando para o impossível. E eu sempre fui assim. Mas me prendendo, me perdendo, tentando me encontrar em chãos que nunca foram meus.
Mais do que amar a pessoa amada, eu amo amar. Eu amo o amor. Mais que amar aquilo que se acredita, eu amo acreditar. Mais que gostar das coisas que gosto, eu sou aquilo que gosto. Eu, amadora, transformo-me na coisa amada. Faço dela minha poesia. Acredito no impossível, porque nele é tudo possível. Acredito no infinito. Porque Eu Sou Amor, da cabeça aos pés. Sou absurda, camusiana, porque espero, sou esperançosa. Crio infinitos mundos, realidades, contos, possibilidades em minha cabeça. E ainda tenho tempo para me surpreender com os fatos. Por que me privar, por Deus? A vida é agora! Vive!

1. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica.
2. SHAKESPEARE, William. Hamlet.

4.7.20

Criança no tempo

Darren Aronofsky - Black Swan, 2011. Natalie Portman e Vincent Cassel

Eu ia postar uma música que me lembra de mim mesma, mas já percebi que fiz isso ano passado. Então só vou postar a música, sem ela estar efetivamente em meu 30 day music challenge.
Child in time é um grito que eu gostaria de dar em meus momentos de silêncio. Sou fera silenciosa, que ruge por dentro. E hoje acordei às 4am, numa semana de muito trauma revelado e auto perdão (mercúrio retrógrado em câncer), anotando pensamentos que só fui compreender quase dez horas depois.

Sempre a vida me mostra que ninguém exige nada de mim, senão eu mesma. Faço muito isso pela criação que tive, opressora que nem o diabo, talvez refletido no céu pelo meu saturno em trígono com a lua. Em poucas palavras: eu exigi de mim uma responsabilidade de adulta antes mesmo de ser criança.

O poder que eu tenho nem sempre é posto para fora, e por isso existem tantas explosões vulcânicas. É o meu jeitinho. Nem sempre correto, claro. Mas estou mais para bobo da corte, menestrel, homem ridículo, do que pra príncipe. É um baita poder. Ferino. Porque, percebi, sempre quis ser adulta para me vingar de toda a repressão e repreensão que me acontecia. Existe uma cena da novela A Indomada (estou rindo agora, com o título da novela), em que Zé Leandro vai com a filha Eulália até um horizonte, no crepúsculo - se minha memória não falha -, pega um punhado de terra e diz a ela: terra é sempre terra. Nisso há alguma promessa feita, o pai morre, e ela volta vinte anos depois para se vingar. Eu cresci vendo novelas e lendo livros de contendas entre famílias, amo o cangaço e tantas outras histórias. A justiça pulsa em meu sangue, mas às vezes, por falta de timing, essa sede de justiça acumula-se em sabor amargo de vingança. É aí que o caldo entorna. Então queria me tornar adulta não apenas para fazer diferente, mas para me vingar. Quando uma criança nasce, os antigos rezam para que ela "vingue". É bem por aí. Minha vida é uma vingança: contra o patriarcado, contra o capitalismo, contra a classe média, contra a xenofobia, contra a cidade, contra a civilização.

Então a dor que eu acumulo nos meus silêncios, que eu sinto sem saber dar nome, quando sai é um estouro. Talvez eu devesse falar com certa vergonha e arrependimento, mas sempre essa força acaba me saindo como vaidade. Quase escrevi agora: "desculpem", mas "desculpem", nada. Claro que estou aqui para superar a mim mesma, como propõe Hemingway. 
Não há nobreza em ser superior ao seu semelhante. A verdadeira nobreza é ser superior ao seu antigo eu.
Mas também vou de Clarice, que diz:
Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. 
E, por edifício, cito o pai de Viviane, pedreiro e filósofo baiano: "não começamos a construir um prédio do último andar". Talma, por sua vez, me explicou a ordem da vida a partir do nascimento: "Viver é isso. Eternas etapas. Não corre antes de gatinhar, levantar , andar, trotar e correr. Tudo tem processo." Eu, que amo o processo, que amo O Processo, nego esse amor, metendo os pés pelas mãos. E eu mesma me disse, hoje ainda, horas antes dessa conversa com as amigas: você nunca faz um bolo só tendo a cereja como ingrediente. Deve se mexer com o cru, com o processo de cozimento, até chegar na cereja, que muitas vezes é desnecessária.

Por que estou dizendo tudo isso? Por causa do auto perdão. Eu não sei errar. Sei admitir erros racionalmente. O Ego, o consciente se esbaldam de trabalho bem feito. Mas o inconsciente cobra de noite, o coração pesa por tentar pulsar, quente e úmido, com uma lâmina fria cortando seu ritmo. É cruel sentir culpa pelo que se é, e sentir culpa por coisas que na verdade foram acertadas. E escrevo para sentir que entendi, porque saber que entendi só vale da boca (ou dos dedos) para fora. Atingir dentro é muito mais profundo.
Ainda sou orgulhosa demais para ouvir conselhos, para admitir erros e para receber sermões. Enquanto for fechada para essas interferências externas, nada mudará dentro de mim, e não conseguirei ser superior a mim mesma. Humildade. Resiliência.
Um diário compartilhado, 22.8.19
Esse texto é um pedido de desculpas. Não sei se externo (acho que também), mas com certeza interno. Peço desculpas a mim mesma do passado, por cobrar atitudes que na hora não me vieram à cabeça. Peço desculpas por me torturar por ter tido apagões na mente quando questionada se eu queria conversar sobre minhas dores. Eu não sabia o que dizer, porque não sabia o que sentia. E não saber o que se sente é perigoso: é dar as rédeas de tua carroça para outra pessoa guiar os teus cavalos e decidir por que caminho percorrer. E isso aconteceu muito comigo. Com homens, desde o meu pai. Com mulheres que me eram subordinadas e pessoas a quem eu era subordinada. Nem todos foram corretos comigo. Muitos tentaram acertar, erraram tentando. E eu pensei neles quando deveria ter pensado em mim. Me calei por eles, quando não gritei por mim. Fui príncipe, no meu momento de ser ridícula. Fui exposta por isso. Fui silenciosa por desespero de gritar, fui silenciada, ignorada quando quis falar. Eu, que sou tão sombria, introspectiva, elegante e comedida, fui jogada num palco onde outro era o diretor da minha cena. Mas o monólogo era meu! Eles esperaram, talvez, um improviso meu. Um show. E eu lhes dei um apavoramento que me assusta até hoje. É como se eu tivesse posto uma corrente feito colar de diamantes no meu próprio pescoço, dando-lhes a ponta para segurarem. Por que fiz isso? Não sei. Ou talvez, sei: por não saber dirigir. E aprendemos a dirigir quando conhecemos bem o mecanismo e macetes dos veículos que somos. 

Não sabia quem eu era, e até nem sei quem sou. Mas busco entender quem estou sendo. E quem eu sou agora me dá muito orgulho e medo. Medo porque é enorme. Medo porque ainda não saiu muito bem do casulo. Mas eu não sou mais quem eu era. E preciso entender - é por isso que escrevo -, porque me entendendo saberei lidar comigo e com os outros.
(...) fecha, todavia, os olhos e faz por ignorar que o apego desesperado ao próprio EU, a desesperada ÂNSIA de viver, são o caminho mais seguro para a MORTE ETERNA, ao pásso que o SABER MORRER, RASGAR o véu do mistério, ir procurando eternamente mutações em SI mesmo, conduz a IMORTALIDADE (...).
Hermann Hesse, O Lobo da estepe
Não se pode ter tudo na vida. "A vida é feita de escolhas", aprendi no emprego. A vida é feita de cortes, e percebi que, mesmo sem analisar muito bem, eu tomo essas iniciativas cortantes. Sou aquela que fere, que virá mais tranquila. Sou a terceira lâmina.

A vida é feita de escolhas, e era escolha o que o sexto arcano me pedia naquele final de agosto de 2019. Escolha que demorei a fazer. A escolha era entre um ser e o tempo. Tentei escolher o ser, que escolheu não ser. Enquanto isso, o tempo vinha e me puxava com a foice pelo pé. Até que escolhi o tempo, e senti culpa pelo que deixei para trás. Mas cortei, silenciosa, o laço. Laço que me era a corrente de diamantes. Acordo assustada sentindo a ponta da joia fisgando meu pescoço e, de dor cega, me esqueço que é só cicatriz. Não tem corrente, não tem mais faca enfiada no peito. Apenas tatuagens emocionais. Bonitas, até. Me fazem criar textos como esse. Contos. Colagens. Conversas. Crio a lágrima no rosto alheio. Sou o próprio Don Juan De Marco, com aquele magnetismo infalível da doença que é o romantismo incurável.

Quem muito quer, nada tem. E o tempo necessita de vazios, espaço, ócio, intervalos. A música é a expressão artística que mais nos enlouquece porque justamente respeita e é feita desses silêncios. E foi no silêncio que me encontrei. Que tive tempo para mim. 
Sweet child in time
You'll see the line
The line that's drawn between
Good and bad
See the blind man
Shooting at the world
Bullets flying
Ohh taking toll
If you've been bad
Oh Lord I bet you have
And you've not been hit
Oh by flying lead
You'd better close your eyes
Ooohhhh bow your head
Wait for the ricochet
Acompanhe meu trabalho no Estúdio São Jerônimo
Não é que eu não acredite nas suas palavras, mas dizer para você que "tudo bem"... todos os "tudo bem" que eu disse pra você só aprisionaram/calaram a minha dor, é negar toda a dor que já senti. Seria injusto comigo ser justa com você.
14.05.2020 06h40

19.6.20

Vulcânica

Erez Marom - Vulcão Kilauea, Havai.

Estava aqui agorinha conversando com minha xará de sobrenome, Alessandra Araújo, sobre processos criativos e marketing, por causa de um texto que saiu sobre a Amazon. Foi um fluxo de coisas na verdade, mas eu ando tão brainstormica que nem me atrevo a fazer sentido mais.

Há alguns dias estou alimentando a ideia de publicar. Seja um e-book de ensaios, contos, autobiográfico, seja uma zine digital, um pdf baratinho. Só que não sei onde publicar isso. Na Amazon é fácil, mas a política dessa empresa é tão anti-trabalhadora que, mesmo que eu diga que não me importo com a ética burguesa, eu me importo com a ética do proletariado. Então não sei como fazer.


Publicar grátis é muito fácil, e seria o ideal. Eu amo jogar meus textos por aí como fiapos de dente-de-leão soprados e propagados pelo vento. Me importa muito mais ser lida do que ser famosa, ou ganhar com isso. Mas, acontece que meu trabalho no momento é ser eu. E ser eu tem sido difícil. Mas prefiro a dificuldade de ser eu, ser o meu próprio meio de produção, do que voltar a me prostituir para o capital. Não era ruim trabalhar com o que trabalhei, pelo contrário. Não é isso. Sempre trabalhei com crianças e com educação, mesmo que eu negasse a Profissão: professora dentro de mim. Sou um Locke-Robertson de Antonioni, talvez. Minha angústia, e agora meu desafio, é fazer o que eu quero, o que eu sou e o que eu acredito. Acreditava no que eu fazia, mas não era eu. Eu emprestava a minha ferramenta de trabalho para produções alheias. E hoje tenho que moldar minha ferramenta para produções próprias. É como um artesão medieval trocando o ferro pelo barro. Talvez isso fosse absurdo naquele tempo, já que o ofício era hereditário, tradição, processos. Mas ontem na terapia defini que sou toda medieval. Talvez por ser pré-capitalista.

Michelangelo Antonioni - Professione: reporter, 1975. Jack Nicholson's David Locke/ Robertson
Fugi de tudo. Da minha mulher. Da casa. De um filho adotivo. De um bom emprego. De tudo, exceto alguns maus hábitos.
David Locke
Sobre os processos, também foi conversa minha com Alê e a terapeuta. Esta última me indicou o Ser criativo, de Stephen Nachmanovitch. É meu primeiro livro sobre processos criativos, que achei no scribd em inglês e aproveito para treinar o outro idioma. Porque eu amo e defendo o processo, mas tenho uma dificuldade enorme de não concluir um projeto quando ele demora mais que um dia. Isso diz muito sobre esse blog, inclusive, que tem tantos rascunhos quanto textos publicados. É sempre no calor do momento, porque - parece que - meu temperamento é colérico, e se eu vou esfriando, o magma endurece e torna-se pedra. Coisas de uma mente ansiosa.

Só que eu também sou lenta. E nisso eu entro na literatura. Ontem citei e fui relacionada a vários personagens dúbios da história da literatura. Dorian Gray, Dr. Jekyll & Mr. Hyde, Nina, de Black Swan. Lisbela e Inaura, Bela e Fera, Fragmentado. Na verdade o fragmentado é uma piada minha, porque a terapeuta apenas comentou de a minha arte ser fragmentada - o que explica minhas colagens -, e eu gosto muito de James McAvoy e desses 20 e tantos personagens em um só.

Mr. Night Shyamalan - Glass, 2019. James McAvoy's Kevin, Beast, Et cetera

E, conversando com Alessandra, chegamos ao marketing (por causa da publicação que eu quero vender). Não sei fazer isso. Comentei com ela que não sei ser "Oi, tudo bem? Texto aqui. E aí, como acontece com você? Escreve aí nos comentários!". Não sei ser "carinhosa" desse jeito. Eu sou carinhosa, mas parece que deve haver o mínimo de envolvimento pessoal. Socialmente eu sou muito seca e direta, ou pelo menos me enxergo assim. Minhas opiniões são diretas. Minha amiga Marina comentou em stories que sempre assisto a tudo quieta e que só abro a boca para coisas extremamente pertinentes. Foi um baita elogio, e eu me vi como aqueles bichos que moram em cavernas e só saem para dar o bote, como a Lasiodora parahybana (não pesquise se você é aracnofóbica/o), ou aqueles eremitas que moram distantes do mundo "civilizado". Nunca fui dada a grupos, e toda vez que tentei entrar em um, sentia que estava me traindo. E comentei com Alessandra que ser "carinhosa" assim na internet, por mais que seja uma estratégia de marketing, é ser falsa comigo mesma. Por isso eu tenho tanto essa facilidade de falar mal de qualquer poder simbólico da burguesia, isso me cheira a carne podre e eu sou um bicho que gosta de comer carne fresca. Mas nada contra quem é assim (na verdade tudo contra, pra que mentir?). O capitalismo exige.

Alessandra falou que talvez no mundo da escrita essa liberdade de não ser carinhosa é mais fácil de existir (na verdade eu entendi isso do que ela comentou). E me veio na cabeça feito um tijolo - porque não poderia ser feito pluma - Dostoiévski. Me lembro de ler Notas do subsolo (nunca sei se é notas ou memórias, acho que é Memórias do subsolo) como uma criança come um brigadeiro em festas de aniversário. Ou como eu criança comia balas de coco em festas de aniversário. É um livro curto mas é muito pesado, porque tem muito ódio e, que engraçado, é um homem encavernado no seu quartinho no subsolo da sociedade, provocando os cidadãos russos e, ao mesmo tempo, provocando a si mesmo! Uma associação ao vivaço nesse blog. Sincronicidade em tempo real. Eu me via aquele homem do subsolo, querendo arranjar uma briga com o guarda no bar, querendo não desviar seu caminho na praça, para o soldado ter que desviar e, se o soldado não desviasse, que eles trombassem e se engalfinhassem numa briga de morte, então. Isso é assustadoramente eu.

E, de Dostoievski, fui lembrando de Clarice, de Graciliano, de Guimarães. Até mesmo de Orwell. E agora Marx, Engels. Se você for ler todos esses autores, e até outros, como Kafka, é uma coisa tão horrível e arranhada, mas é horrível de lindo. É arranhado feito aguardente e violoncelo. Ou rabeca, um instrumento arcaico (medieval) da música feita no nordeste. E são os autores que eu mais me identifiquei desde sempre. Clarice é a caçula deles todos. Graciliano eu amei em Vidas secas, porque para mim Fabiano é meu avô e os meninos meu pai e tios. Baleia talvez fosse eu entendendo as secas que não vivi. De Guimarães eu li pouco, e acho difícil, mas viver não é mesmo um rasgar-se e remendar-se? Eu costuro, rasgo, colo, rabisco. Amo as ruínas, tendo trabalhado com patrimônio. Orwell é a minha vida acadêmica resumida, digo que amo Stalin mas adoro escrever sobre antitotalitarismos por aí. Marx e Engels tinham a ponta do bico-de-pena afiada demais, parece que escreviam com sangue e com sarcasmo. A coisa mais linda desse mundo são os prefácios à edição de mil oitocentos e qualquer coisa. É uma dedicação à contemporaneidade que me deixa besta. Poucos acadêmicos são assim. Conheço com a palma de uma mão, apenas, acadêmicos assim no Brasil. Mas eu sou difícil de agradar. Eu acho. E Kafka... O Processo, né? Sem querer dar spoiler de uma obra de quase cem anos, mas O Processo é um processo inacabado. Franz morreu antes de terminar. E só essa historieta já faz o livro valer toda a pena do mundo. O Processo é muito mais do que Dilma passou há poucos anos, por mais que valha essa comparação. O Processo é uma coisa que diz mais ainda de mim, e Orson Welles perfeitamente filmografou como eu mesma imaginava. Isso foi chocante demais para mim. Assim como o livro interminado, e a história em sua gênese inacabada, as edificações do filme também estão em processo de construção. Essa obra é um labirinto, assim como eu.

Orson Welles - The Trial, 1962. Anthony Perkins's Josef K

Estou dizendo tudo isso para me encontrar, mesmo. Porque estou perdidinha. Pareço tanto G. H. que não consigo ler esse livro porque cada linha me fere o peito, parece um soco nas costelas que nunca tinha levado antes. Então vou voltar aos instrumentos para não sofrer demais. Estava falando sobre o violoncelo ardido. Stephen Nachmanovitch, o autor do livro que comentei ali em cima, é violinista e suas músicas são rasgadas assim também. Eu gosto de Bach, de Liszt, de Prokofiev, Tchaikovsky, Vivaldi, Beethoven, todos pelo mesmo motivo. Ouço mais Mozart, mas por motivo um pouco diferente, então não conta aqui. Os seis primeiros têm algo de desesperador em alguns momentos e movimentos, e eu volto àquela cena de Gary Oldman: "gosto dos momentos de calma anteriores à tempestade, isso me lembra Beethoven". Ah, tem Ravel também. Colocando algumas músicas específicas desses artistas em perspectiva, é como, novamente, o vulcão em erupção. Você tem a calmaria, o crescendo, o ápice, a explosão, o escorrer da lava que, silenciosa e plácida, arrasa os arredores enrijecendo e se tornando obsidiana: um negro vidro vulcânico lindíssimo. Talvez esse seja meu processo. Na verdade é assim que eu sou também, mas a impressão é que sou tudo isso ao mesmo tempo. Explosão de calmaria, magma quente e macio, e um belo vidro bonito e duro que serve de espelho e joia.

Luc Besson - Léon: the professional, 1994. Gary Oldman's Stansfield

Não sei se vou sobreviver financeiramente nesse mundo capitalista de métodos de conquista de potenciais clientes, sempre fugi de administração, contabilidade, marketing e empreendedorismo como o diabo foge da cruz, e estou tendo que lidar com tudo isso agora, ao mesmo tempo, enquanto crio dolorosamente. Mas eu também sou teimosa. Alguns de vocês comentaram sobre eu escrever e isso me fez ver como minha escrita é importante. Não sei se há imodéstia em alguma fala aqui, mas sempre fui tão modesta que isso encheu meu saco, então nem me darei o trabalho de ser. Já é muito difícil, e eu não sei por quê, acreditar que as pessoas gostam do que eu faço, não porque eu não goste do que faço, mas porque sinto que poderia ter feito mais, ou melhor. Sei lá, é uma relação complicada. E por tanta modéstia e perfeccionismo, acumulei anos de aprendizados não postos em prática, e sinto que esse vulcão aqui está ativo. E essa lava quer arrasar Pompeias e Herculanos, destruindo civilizações, mas criando belíssimas ruínas para a posteridade. Engraçado, né? Criar ruínas. Isso é lindo demais.

Fiz uma playlist a partir das músicas que pensei para esse post, e achei a cara de Hefesto, o Vulcano romano, deus da forja, metalurgia, vulcões, ferreiros, artesãos e escultores, assim como eu. Vulcão é uma palavra que veio dele, então nada mais justo. A capa é Vulcan forging the Thunderbolts of Jupiter, de Rubens (1636-38), e está no meu museu favorito que jamais visitei, que é o do Prado. Playlists são também colagens. Desmembro discos, tal qual Saturno (de Goya, que também tem playlist), e crio mundos. Forjo estruturas.


Vou deixar vocês aqui, por mais que isso não tenha sido nem metade do que eu queria dizer. Peço dicas de como começar ganhar dinheiro com arte, escrita, não precisa ser muito. Ko-fi? Patreon? Apoia-se? Algo mais simples? Ou, ainda, dicas de leitura sobre criatividade e criação. Processos. Gêneros literários. Já agradeço de antemão!
© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo