27.12.19

Trevor Sands's INSiDE (2002)

13.12.19

O que mais há por lá?

0'32"
It was me on that road
But you couldn't see me
Too many lights out, but nowhere near here
Eu morava numa casa de dois cômodos, que ainda é essa. A cozinha, que agora é meu quarto, tinha paredes verdes e uma televisão com tubo de madeira encostada num dos cantos, próxima à janela basculante. A mesa ficava em frente à pia, e ali brinquei muito de restaurante com a minha irmã enquanto secávamos a louça. Havia uma estante enorme de madeira, doada pelo meu tio Napoleão, repleta de livros doados por seus patrões, que só o fizeram porque a outra alternativa era o lixo.

Em 2008 entrei no ensino médio, há quase doze anos. Júpiter estava em capricórnio. Minha psicóloga comentou, quando o expansivo se encontrou com a cabra, que sentia as coisas retornarem. Costuma-se ler, na astrologia - que é literatura e oráculo, portanto ligada à intuição, mais que ciência, ligada à razão, e uma coisa não pode combater a outra -, que a cada doze anos retornamos a um certo ponto com certas características. Quando a psico comentou desse retorno, me lembrei de 2008 e fui buscar mais detalhes sobre o período, para saber o que mais ou menos me espera (a resposta está sempre dentro de ti).

Era 2008 e eu me arrumava para a escola, que era à noite. Teve um período, no começo do ano, que eu quis simplesmente desistir de estudar, porque era muito diferente do ensino fundamental, e era de noite. Não que eu tivesse medo da noite, mas aquela mudança me era estranha, até porque era o salto da pré para a adolescência também. Me enconchei em camisas xadrez, mesmo sem ser grunge (só um pouquinho), ouvi os gritos chapados de John Frusciante, pintei uma tela, me apaixonei por um professor qualquer, dei meu primeiro beijo por interesse, só para saber como era e estar pronta e experiente para beijar quem de fato me importava (what goes around... comes around), arranjei meu primeiro emprego, me desiludi com a classe "professor", comecei aos pouquinhos a ouvir Pink Floyd, briguei com minha mãe, soube que meu pai a traía, virei pombo correio de duas pessoas que não se falavam estando num mesmo cômodo, achei meu professor de filosofia arrogante, li pela primeira vez o Retrato de Dorian Gray, conheci a banda Sua Mãe, amava o Kiabbo... e sentia um buraco negro no meu peito quando ouvia Röyksopp.

Em algum crepúsculo de 2008 estava me arrumando para ir para a escola, num ritual que consistia em me atrasar para me arrumar e vestir minha camisa xadrez enquanto ouvia um canal de videoclipes. A noite já me afetava por si só, mas me impeliu para um vácuo quando vi aqueles pés galegos em cima da mesa derramando leite ou qualquer líquido branco que o valha, e casas flutuando em horizontes estéreis no vazio da noite.

Em algum momento, meu amigo me perguntou quais meus videoclipes favoritos, os dez primeiros. Respondi o que me veio em mente de maneira leviana, pois não costumo parar para assistir videoclipes, mas quase com certeza não falei desse aqui. E What else is there estaria no meu top 3, porque reúne diversas referências do que eu sou por dentro.

Eu tenho uma lembrança de infância muito incipiente, onde estou no carro do amigo do meu pai, o João Boquinha (porque tinha a língua afiada como eu), que dirige enquanto passeamos por uma estrada em qualquer lugar, com muitas árvores altas fazendo sombra e deixando escapar apenas pedaços de raios de sol. A partir dessa imagem, minha conexão com as árvores passa a ser absurda a minha vida inteira. Porque mais que as árvores úmidas, verdes, brilhantes, de um dia claro, me interessam as árvores escuras, sombrias, manchas negras mais escuras que a noite.

2'52"
Em 2005, cheguei de viagem em João Pessoa, no meu aniversário de 13 anos. Meu tio Quedinha foi nos buscar de carro, e passei a madrugada desse aniversário na estrada entre João Pessoa e Solânea, uma viagem de pelo menso três horas. O mesmo aconteceu em viagem de 17 horas entre São Paulo e Foz do Iguaçu, no final do mesmo ano. Eu amo viajar à noite, sabe. É como se o mundo fosse completamente meu. E nessa primeira viagem, com meus pais, irmã e tio, fazíamos o que eu mais amo na vida: os adultos conversavam enquanto eu ficava caladinha ouvindo. Em dado momento, começaram a conversar sobre as famosas assombrações nordestinas de beira de estrada; eu, como sempre acreditei e acredito naquilo que não é puramente racional e material, fiquei esperando ansiosamente ver alguma dessas miragens, uma Comadre Fulozinha que fosse, no meio do mato em qualquer curva que fosse feita.

1'06"
Eu tenho uma queda por torres de alta tensão. Em algum momento da adolescência, decidi que aqueles totens de ferro com o poder de matar qualquer ser vivo a partir da eletricidade, eram deuses disfarçados velando nossa incompetência como mortais. Tal como Zeus, poderiam nos fulminar a qualquer momento. E eu conseguia sentir a energia desses objetos.

3'01"
Quando leio textos de psicologia analítica que dizem sobre o inconsciente, quando enxergo O Inconsciente, quando me considero sombra de um sol que não sou eu, e quando me considero sombra de mim mesma, o que eu enxergo são florestas escuras, densas, com fios de luz lunares, que mais parecem fios de teias de aranha reluzentes. As folhas caídas na terra úmida, deteriorando-se como na temporada mortífera-transformadora do lacrau, cobrindo tesouros esquecidos e reprimidos pelo consciente, que para minha alma curiosa são o mais puro ouro. Os bichos noturnos, silenciosos, fugidios, escalando os troncos cobertos de musgos e cogumelos, e se refugiando em cavernas escuras para, quem sabe, dar o bote na presa que dali eles espreitam. Uma guerra silenciosa, que mais se parece com um tango argentino, que rasga o véu da noite com a aspereza de seu cello.
It's about you and the sun
A morning run
The story of my maker
What I have and what I ache for
1'32"
Roads end getting nearer
We cover distance but not together
Esse vídeo sendo visto agora, com o milhão de referências novas que adquiri nesta última primavera, me faz lembrar com uma certeza certa do arcano número 18 do tarot, que é a Lua. Geralmente, a carta possui um artrópode saindo de um lago em direção ao horizonte, e à sua frente há dois caninos, que podem ser ou dois cães, ou um cão e um lobo, uivando ou sorrindo para a lua, ou mesmo mostrando os dentes de raiva, dependendo da interpretação. Após esse primeiro obstáculo, o que o antepassado do escorpião e do caranguejo encontra são duas torres altas, e mais adiante o caminho continua, atravessando montanhas.

1'22" - Referência gritante do arcano da Lua
O caranguejo representa o mundo dos sonhos que tem sua origem nas profundezas do inconsciente e que aponta no mundo racional trazendo seus sinais e símbolos.
Arcano XVIII - A Lua. Respectivamente: Tarot de Marselha, Tarot Rider-Waite-Smith, Tarot Mitológico, Harmonious Tarot, Animal Totem Tarot, Shadowscape Tarot

A carta da Lua representa sabe o que? O Inconsciente. E ela tem me aparecido em sonhos, visões, tiragens, na música, na sala da terapeuta, em Röyksopp. A primavera nossa, outono do pessoal do Norte, representa a entrada da deusa Perséfone no Submundo, para morar com o tio-raptor e marido, Hades. É um dos meus mitos favoritos, e parte de minha personalidade é o arquétipo desta deusa. Ela própria representa o inconsciente, levando em conta sua situação em parte do ano, sua introspecção e gerenciamento da morada dos mortos, o Hades, casa de Saturno e de Plutão.

A Lua, meu astro regente, é domínio da deusa Ártemis, da caça. Irmã gêmea de Apolo, ela nasceu primeiro e ajudou a mãe no parto do menino, que é o deus-Sol. Portanto, protege as gestações, partos, mulheres e crianças. E é uma deusa virgem, ou seja: se basta por ter ativo e equilibrado em si o masculino-feminino.

Também é relacionada à Senhora Hécate, que é acompanhada do Cérbero, cão de três cabeças (daí o Fofo de Harry Potter). A Grande Deusa Hécate é capaz de caminhar por todos os domínios dos deuses: Olimpo, de Zeus, Oceanos, de Poseidon, e Mundo Inferior, de Hades. É mostrada muitas vezes como anciã, e foi ela quem ajudou Deméter a encontrar a filha, Perséfone, no Hades.

Desde pequena tenho uma conexão fortíssima com a Lua. Não canso de contar que achava que ela me seguia. Que meu pai dizia que minha bisavó contava que, no momento em que o casal Lua e Sol, que haviam se apartado por diversas brigas, se reencontrassem, os dinossauros retornariam à vida. Lendas à parte, me lembro também de outra viagem. Retornando, em 1999, da eterna Paraíba, eu me assustava com a cidade grande, sentia um oco dentro de mim. A juventude adolescente pré-terceiro milênio que marcava muros, portões e grades com seu pixo me provocava. O barulho, o ônibus com piso de alumínio, as pessoas desconhecidas e passageiras. Eu era um grito no meio da Noite, que me ardia, que me rasgava, que me protegia, que me velava, que era eu.
I am the storm, I am the wonder
And the flashlights, nightmares
And sudden explosions
0'35"
There's no room where I can go and
You've got secrets too

4.12.19

Conta comigo

Stand by me. Baseado em O Corpo de Stephen King. Direção de Rob Reiner, 1986.
As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem — as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas te olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou enquanto as estava contando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda. As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar.
Tem gente que chama Stephen King de "Rei do terror". Nem discuto essa nomenclatura. Mas eu o enxergo como um mestre do drama psicológico, digamos assim. Pode ser terror, mas não o terror que vejo pintado por aí.

Não li muitos livros dele. Li O Iluminado - que me deu muito medo -, A Coisa, Carrie, comecei Cemitério maldito umas três vezes, e Quatro estações, que penso ter sido meu favorito. Fora os filmes, que nem me lembro direito quais além de O Iluminado, A Janela secreta, Carrie, Christine, A Coisa (antigo) e também meu favorito Conta comigo.

E é sobre Conta comigo que quero conversar hoje.

Esse filme sempre me doeu a alma, porque é uma sessão da tarde, é infantil, e ao mesmo tempo é um desgraçamento da cabeça. Lida com memória, sonhos, aventuras, perdas e ganhos, morte, e o tempo que passa.

Primeiro, vou deixar claro aqui uma coisa: esse filme tem nada mais, nada menos, que River Phoenix. Irmão do Joaquin, ele morreu cedo, de overdose em frente a uma boate que na época era de Johnny Depp: The Viper Room. Está presente no disco Niandra Lades and Usually Just a T-Shirt de John Frusciante, que já tocou na mesma boate. Referências são sempre necessárias.
River Phoenix
A cena que mais me lembro desse filme, e talvez seja a mais icônica mesmo, é a do menino gordo vomitando torta de amora, fazendo com que todos os presentes vomitassem sem parar. Geralmente a gente ri e diz "que nojo!", mas a grande questão dessa cena é o bullying, ou, para termos atuais específicos, gordofobia. Toda uma cidade, não somente crianças, mas pais e professores, humilhando um rapaz que planeja sua nojenta, performática e magistral vingança.

Minha cena favorita talvez seja a dos sanguessugas. Ou todas. A motivação do filme é eles descobrem que há um corpo na floresta - o conto chama-se Outono da inocência: O Corpo - e querem ir até ali, confrontar-se com a morte. Infantil? Pode ser. Infantes são pessoas como os adultos, temos que parar de privar crianças de temas necessários para compreensão de si e do mundo, e estamos fazendo justamente o contrário, alienando-os, privando-os de frustração, quando eles, na verdade são mentes mais frescas e capazes de compreender as mais difíceis filosofias.

E eu só serei jovem uma vez!
Enfim, a aventura do grupo de amigos, cada um com sua característica, é ir juntos encontrar O Corpo e contemplá-lo. Quando chegam ao destino, O Corpo é observado quase que como em um ritual. Há reflexão, há contemplação. E há o olhar para trás e ver que a história, por mais que tenha sido motivada pelo objeto inerte a ser encontrado futuramente, a história esteve na caminhada. Nos perigos que eles correram, nas brigas que causaram, nos sonhos que tiveram, nas histórias que contaram. E isso trouxe a eles mais um pouquinho de maturidade, de compreensão da vida, de si mesmos e a amizade que alimentaram.

Isso é muito dramático. Porque viver é dramatizar. A vida é, como dizem, uma peça de teatro encenada ao vivo, intuitivamente, sem ensaios.

O que mais dói, na verdade, é o futuro, que depois é passado. O desfecho da história, onde os amigos vão morrendo um a um, e o mais pacificador dos amigos é o que morre numa briga de bar, tentando apaziguar querelas alheias. Isso é tão paradoxal, contraditório, não-natural, que é lindo, é belo. E a beleza dói. Um dia eu chorei até me engasgar, e sinto que aquela conteplação que rebentou o choro aconteceu porque foi a primeira vez que enxerguei o belo em minha vida.
“Não há tomada de consciência sem dor. As pessoas farão qualquer coisa, não importa o quão absurda, para evitar enfrentar a própria alma. Não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas vivendo conscientemente a escuridão”
[atribuida a] Carl G. Jung
Talvez o terror esteja posto não nos monstros alegóricos das histórias, mas no fato de o espectador ter que encarar as sombras arquetípicas da sociedade como um todo representadas nesses mesmos monstros. Que somos nós.
[...] Dizíamos “oi” a distância. Era tudo. Isso acontece. Os amigos entram e saem da nossa vida como serventes de restaurante, já reparou? Mas, quando penso naquele sonho, os corpos embaixo d’água puxando insistentemente minhas pernas, parece certo que tenha sido assim. Algumas pessoas afundam, é isso. Não é justo, mas acontece. Algumas pessoas afundam. [...] Eu? Atualmente sou escritor, como disse. Muitos críticos acham que escrevo bobagens. Quase sempre acho que têm razão... [...]. Minha história parece tanto um conto de fadas que é absurda. [...] A ponte mais acima foi demolida, mas o rio ainda existe. E eu também.
When the night has come 
And the land is dark 
And the moon 
Is the only light we'll see 

No, I won't be afraid 
Oh, I won't be afraid 
Just as long as you stand 
Stand by me
FIM

KING, Stephen. Outono da inocência: o corpo. In. Quatro estações.
© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo