27.12.19

Trevor Sands's INSiDE (2002)

13.12.19

O que mais há por lá?

0'32"
It was me on that road
But you couldn't see me
Too many lights out, but nowhere near here
Eu morava numa casa de dois cômodos, que ainda é essa. A cozinha, que agora é meu quarto, tinha paredes verdes e uma televisão com tubo de madeira encostada num dos cantos, próxima à janela basculante. A mesa ficava em frente à pia, e ali brinquei muito de restaurante com a minha irmã enquanto secávamos a louça. Havia uma estante enorme de madeira, doada pelo meu tio Napoleão, repleta de livros doados por seus patrões, que só o fizeram porque a outra alternativa era o lixo.

Em 2008 entrei no ensino médio, há quase doze anos. Júpiter estava em capricórnio. Minha psicóloga comentou, quando o expansivo se encontrou com a cabra, que sentia as coisas retornarem. Costuma-se ler, na astrologia - que é literatura e oráculo, portanto ligada à intuição, mais que ciência, ligada à razão, e uma coisa não pode combater a outra -, que a cada doze anos retornamos a um certo ponto com certas características. Quando a psico comentou desse retorno, me lembrei de 2008 e fui buscar mais detalhes sobre o período, para saber o que mais ou menos me espera (a resposta está sempre dentro de ti).

Era 2008 e eu me arrumava para a escola, que era à noite. Teve um período, no começo do ano, que eu quis simplesmente desistir de estudar, porque era muito diferente do ensino fundamental, e era de noite. Não que eu tivesse medo da noite, mas aquela mudança me era estranha, até porque era o salto da pré para a adolescência também. Me enconchei em camisas xadrez, mesmo sem ser grunge (só um pouquinho), ouvi os gritos chapados de John Frusciante, pintei uma tela, me apaixonei por um professor qualquer, dei meu primeiro beijo por interesse, só para saber como era e estar pronta e experiente para beijar quem de fato me importava (what goes around... comes around), arranjei meu primeiro emprego, me desiludi com a classe "professor", comecei aos pouquinhos a ouvir Pink Floyd, briguei com minha mãe, soube que meu pai a traía, virei pombo correio de duas pessoas que não se falavam estando num mesmo cômodo, achei meu professor de filosofia arrogante, li pela primeira vez o Retrato de Dorian Gray, conheci a banda Sua Mãe, amava o Kiabbo... e sentia um buraco negro no meu peito quando ouvia Röyksopp.

Em algum crepúsculo de 2008 estava me arrumando para ir para a escola, num ritual que consistia em me atrasar para me arrumar e vestir minha camisa xadrez enquanto ouvia um canal de videoclipes. A noite já me afetava por si só, mas me impeliu para um vácuo quando vi aqueles pés galegos em cima da mesa derramando leite ou qualquer líquido branco que o valha, e casas flutuando em horizontes estéreis no vazio da noite.

Em algum momento, meu amigo me perguntou quais meus videoclipes favoritos, os dez primeiros. Respondi o que me veio em mente de maneira leviana, pois não costumo parar para assistir videoclipes, mas quase com certeza não falei desse aqui. E What else is there estaria no meu top 3, porque reúne diversas referências do que eu sou por dentro.

Eu tenho uma lembrança de infância muito incipiente, onde estou no carro do amigo do meu pai, o João Boquinha (porque tinha a língua afiada como eu), que dirige enquanto passeamos por uma estrada em qualquer lugar, com muitas árvores altas fazendo sombra e deixando escapar apenas pedaços de raios de sol. A partir dessa imagem, minha conexão com as árvores passa a ser absurda a minha vida inteira. Porque mais que as árvores úmidas, verdes, brilhantes, de um dia claro, me interessam as árvores escuras, sombrias, manchas negras mais escuras que a noite.

2'52"
Em 2005, cheguei de viagem em João Pessoa, no meu aniversário de 13 anos. Meu tio Quedinha foi nos buscar de carro, e passei a madrugada desse aniversário na estrada entre João Pessoa e Solânea, uma viagem de pelo menso três horas. O mesmo aconteceu em viagem de 17 horas entre São Paulo e Foz do Iguaçu, no final do mesmo ano. Eu amo viajar à noite, sabe. É como se o mundo fosse completamente meu. E nessa primeira viagem, com meus pais, irmã e tio, fazíamos o que eu mais amo na vida: os adultos conversavam enquanto eu ficava caladinha ouvindo. Em dado momento, começaram a conversar sobre as famosas assombrações nordestinas de beira de estrada; eu, como sempre acreditei e acredito naquilo que não é puramente racional e material, fiquei esperando ansiosamente ver alguma dessas miragens, uma Comadre Fulozinha que fosse, no meio do mato em qualquer curva que fosse feita.

1'06"
Eu tenho uma queda por torres de alta tensão. Em algum momento da adolescência, decidi que aqueles totens de ferro com o poder de matar qualquer ser vivo a partir da eletricidade, eram deuses disfarçados velando nossa incompetência como mortais. Tal como Zeus, poderiam nos fulminar a qualquer momento. E eu conseguia sentir a energia desses objetos.

3'01"
Quando leio textos de psicologia analítica que dizem sobre o inconsciente, quando enxergo O Inconsciente, quando me considero sombra de um sol que não sou eu, e quando me considero sombra de mim mesma, o que eu enxergo são florestas escuras, densas, com fios de luz lunares, que mais parecem fios de teias de aranha reluzentes. As folhas caídas na terra úmida, deteriorando-se como na temporada mortífera-transformadora do lacrau, cobrindo tesouros esquecidos e reprimidos pelo consciente, que para minha alma curiosa são o mais puro ouro. Os bichos noturnos, silenciosos, fugidios, escalando os troncos cobertos de musgos e cogumelos, e se refugiando em cavernas escuras para, quem sabe, dar o bote na presa que dali eles espreitam. Uma guerra silenciosa, que mais se parece com um tango argentino, que rasga o véu da noite com a aspereza de seu cello.
It's about you and the sun
A morning run
The story of my maker
What I have and what I ache for
1'32"
Roads end getting nearer
We cover distance but not together
Esse vídeo sendo visto agora, com o milhão de referências novas que adquiri nesta última primavera, me faz lembrar com uma certeza certa do arcano número 18 do tarot, que é a Lua. Geralmente, a carta possui um artrópode saindo de um lago em direção ao horizonte, e à sua frente há dois caninos, que podem ser ou dois cães, ou um cão e um lobo, uivando ou sorrindo para a lua, ou mesmo mostrando os dentes de raiva, dependendo da interpretação. Após esse primeiro obstáculo, o que o antepassado do escorpião e do caranguejo encontra são duas torres altas, e mais adiante o caminho continua, atravessando montanhas.

1'22" - Referência gritante do arcano da Lua
O caranguejo representa o mundo dos sonhos que tem sua origem nas profundezas do inconsciente e que aponta no mundo racional trazendo seus sinais e símbolos.
Arcano XVIII - A Lua. Respectivamente: Tarot de Marselha, Tarot Rider-Waite-Smith, Tarot Mitológico, Harmonious Tarot, Animal Totem Tarot, Shadowscape Tarot

A carta da Lua representa sabe o que? O Inconsciente. E ela tem me aparecido em sonhos, visões, tiragens, na música, na sala da terapeuta, em Röyksopp. A primavera nossa, outono do pessoal do Norte, representa a entrada da deusa Perséfone no Submundo, para morar com o tio-raptor e marido, Hades. É um dos meus mitos favoritos, e parte de minha personalidade é o arquétipo desta deusa. Ela própria representa o inconsciente, levando em conta sua situação em parte do ano, sua introspecção e gerenciamento da morada dos mortos, o Hades, casa de Saturno e de Plutão.

A Lua, meu astro regente, é domínio da deusa Ártemis, da caça. Irmã gêmea de Apolo, ela nasceu primeiro e ajudou a mãe no parto do menino, que é o deus-Sol. Portanto, protege as gestações, partos, mulheres e crianças. E é uma deusa virgem, ou seja: se basta por ter ativo e equilibrado em si o masculino-feminino.

Também é relacionada à Senhora Hécate, que é acompanhada do Cérbero, cão de três cabeças (daí o Fofo de Harry Potter). A Grande Deusa Hécate é capaz de caminhar por todos os domínios dos deuses: Olimpo, de Zeus, Oceanos, de Poseidon, e Mundo Inferior, de Hades. É mostrada muitas vezes como anciã, e foi ela quem ajudou Deméter a encontrar a filha, Perséfone, no Hades.

Desde pequena tenho uma conexão fortíssima com a Lua. Não canso de contar que achava que ela me seguia. Que meu pai dizia que minha bisavó contava que, no momento em que o casal Lua e Sol, que haviam se apartado por diversas brigas, se reencontrassem, os dinossauros retornariam à vida. Lendas à parte, me lembro também de outra viagem. Retornando, em 1999, da eterna Paraíba, eu me assustava com a cidade grande, sentia um oco dentro de mim. A juventude adolescente pré-terceiro milênio que marcava muros, portões e grades com seu pixo me provocava. O barulho, o ônibus com piso de alumínio, as pessoas desconhecidas e passageiras. Eu era um grito no meio da Noite, que me ardia, que me rasgava, que me protegia, que me velava, que era eu.
I am the storm, I am the wonder
And the flashlights, nightmares
And sudden explosions
0'35"
There's no room where I can go and
You've got secrets too

4.12.19

Conta comigo

Stand by me. Baseado em O Corpo de Stephen King. Direção de Rob Reiner, 1986.
As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem — as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas te olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou enquanto as estava contando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda. As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar.
Tem gente que chama Stephen King de "Rei do terror". Nem discuto essa nomenclatura. Mas eu o enxergo como um mestre do drama psicológico, digamos assim. Pode ser terror, mas não o terror que vejo pintado por aí.

Não li muitos livros dele. Li O Iluminado - que me deu muito medo -, A Coisa, Carrie, comecei Cemitério maldito umas três vezes, e Quatro estações, que penso ter sido meu favorito. Fora os filmes, que nem me lembro direito quais além de O Iluminado, A Janela secreta, Carrie, Christine, A Coisa (antigo) e também meu favorito Conta comigo.

E é sobre Conta comigo que quero conversar hoje.

Esse filme sempre me doeu a alma, porque é uma sessão da tarde, é infantil, e ao mesmo tempo é um desgraçamento da cabeça. Lida com memória, sonhos, aventuras, perdas e ganhos, morte, e o tempo que passa.

Primeiro, vou deixar claro aqui uma coisa: esse filme tem nada mais, nada menos, que River Phoenix. Irmão do Joaquin, ele morreu cedo, de overdose em frente a uma boate que na época era de Johnny Depp: The Viper Room. Está presente no disco Niandra Lades and Usually Just a T-Shirt de John Frusciante, que já tocou na mesma boate. Referências são sempre necessárias.
River Phoenix
A cena que mais me lembro desse filme, e talvez seja a mais icônica mesmo, é a do menino gordo vomitando torta de amora, fazendo com que todos os presentes vomitassem sem parar. Geralmente a gente ri e diz "que nojo!", mas a grande questão dessa cena é o bullying, ou, para termos atuais específicos, gordofobia. Toda uma cidade, não somente crianças, mas pais e professores, humilhando um rapaz que planeja sua nojenta, performática e magistral vingança.

Minha cena favorita talvez seja a dos sanguessugas. Ou todas. A motivação do filme é eles descobrem que há um corpo na floresta - o conto chama-se Outono da inocência: O Corpo - e querem ir até ali, confrontar-se com a morte. Infantil? Pode ser. Infantes são pessoas como os adultos, temos que parar de privar crianças de temas necessários para compreensão de si e do mundo, e estamos fazendo justamente o contrário, alienando-os, privando-os de frustração, quando eles, na verdade são mentes mais frescas e capazes de compreender as mais difíceis filosofias.

E eu só serei jovem uma vez!
Enfim, a aventura do grupo de amigos, cada um com sua característica, é ir juntos encontrar O Corpo e contemplá-lo. Quando chegam ao destino, O Corpo é observado quase que como em um ritual. Há reflexão, há contemplação. E há o olhar para trás e ver que a história, por mais que tenha sido motivada pelo objeto inerte a ser encontrado futuramente, a história esteve na caminhada. Nos perigos que eles correram, nas brigas que causaram, nos sonhos que tiveram, nas histórias que contaram. E isso trouxe a eles mais um pouquinho de maturidade, de compreensão da vida, de si mesmos e a amizade que alimentaram.

Isso é muito dramático. Porque viver é dramatizar. A vida é, como dizem, uma peça de teatro encenada ao vivo, intuitivamente, sem ensaios.

O que mais dói, na verdade, é o futuro, que depois é passado. O desfecho da história, onde os amigos vão morrendo um a um, e o mais pacificador dos amigos é o que morre numa briga de bar, tentando apaziguar querelas alheias. Isso é tão paradoxal, contraditório, não-natural, que é lindo, é belo. E a beleza dói. Um dia eu chorei até me engasgar, e sinto que aquela conteplação que rebentou o choro aconteceu porque foi a primeira vez que enxerguei o belo em minha vida.
“Não há tomada de consciência sem dor. As pessoas farão qualquer coisa, não importa o quão absurda, para evitar enfrentar a própria alma. Não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas vivendo conscientemente a escuridão”
[atribuida a] Carl G. Jung
Talvez o terror esteja posto não nos monstros alegóricos das histórias, mas no fato de o espectador ter que encarar as sombras arquetípicas da sociedade como um todo representadas nesses mesmos monstros. Que somos nós.
[...] Dizíamos “oi” a distância. Era tudo. Isso acontece. Os amigos entram e saem da nossa vida como serventes de restaurante, já reparou? Mas, quando penso naquele sonho, os corpos embaixo d’água puxando insistentemente minhas pernas, parece certo que tenha sido assim. Algumas pessoas afundam, é isso. Não é justo, mas acontece. Algumas pessoas afundam. [...] Eu? Atualmente sou escritor, como disse. Muitos críticos acham que escrevo bobagens. Quase sempre acho que têm razão... [...]. Minha história parece tanto um conto de fadas que é absurda. [...] A ponte mais acima foi demolida, mas o rio ainda existe. E eu também.
When the night has come 
And the land is dark 
And the moon 
Is the only light we'll see 

No, I won't be afraid 
Oh, I won't be afraid 
Just as long as you stand 
Stand by me
FIM

KING, Stephen. Outono da inocência: o corpo. In. Quatro estações.

27.11.19

Por que eu escrevo

Quando estou muito desesperada, sinto o vento que abraça a minha pele. É como o primeiro respiro de um recém-nascido.
42. Transforma tua cólera em criatividade.
Esses dias, na terapia, a psicóloga lembrou de Patti Smith quando eu falei uma frase sobre ser fantástica no sentido de pertencer do mundo da fantasia, assim como os personagens de Cem anos de solidão. Na autobiografia, Patti diz que vivia no mundo dos sonhos, e como recompensa, seus professores, que não achavam nada disso prático para o mundo da razão, a punham sentada num banco alto com chapéu de burro na cabeça. E Patti Smith, para quem não sabe, é essa maravilhosidade que exponho abaixo, com trecho de uma música batida, mas que bateu em mim em agosto, que estourou-me uma crise de choro e tremedeira, que me fez iniciar meu acerto de contas com Shiva um ano depois de ele ter me cobrado transformações.

Patti Smith - Horses
The plot of our life sweats in the dark like a face
The mystery of childbirth, of childhood itself
Grave visitations
What is it that calls to us?
Why must we pray screaming?
Why must not death be redefined?
We shut our eyes we stretch out our arms
And whirl on a pane of glass
An afixiation a fix on anything the line of life the limb of a tree
The hands of he and the promise that s/he is blessed among women.
Depois que ela leu o trecho da Patti falando que era uma eterna sonhadora, eu me lembrei de uma coisa que decidi comigo mesma, mas não lembro se falei para alguém, ou se soou inédito naquele momento: eu, desde os 16 anos, escrevo sonhando, desejando, buscando as palavras que conseguissem, não apenas dizer o que sinto, mas que as pessoas também sentissem a minha dor.

Ela arregalou os olhos.

Eu, de fato, não falo à toa. Tudo o que digo tem razão de ser. Não falo palavras ao vento, para não serem lidas, ou para não serem ouvidas. Eu falo para serem sentidas, vivenciadas, comidas, digeridas. Vim aqui para causar impacto. Odiava quando recebia comentários e conselhos secos e vazios, justamente porque ia contra meus propósitos. A palavra tem poder, e eu sei muito bem disso. É por meio dela que histórias se perpetuam, e pela falta dela que histórias morrem.

Aí eu descobri que tem vários anônimos me lendo há anos. Volta e meia alguém me diz que me leu, me agradece por se sentir no meu texto. A coisa mais fofa que já me aconteceu é descobrir que o irmão da minha amiga favoritou meu blog há dois anos e ela nem lembrava que tinha comentado do meu blog para ele. Acho que estou vencendo na vida.

Como comentei aqui, achava que odiava poesia porque não compreendia. Mas a dor traduz todas as palavras ilegíveis. A dor causa espanto, abre o céu e apresenta o clarão do sentimento. Rasga. E eu passei a entender poesia. E a dor pode ser num nível tão grande que, sem medo dela, eu vou lá e enfrento aquilo que me causa medo, porque é tudo o que me resta. E vou testando a dor, colocando o dedo na ferida, para ver o quão profunda ela é, até onde ela vai, se precisa de amputação, se vai gangrenar, se é superficial, se vai deixar cicatriz. E nisso, eu vou me conhecendo. E vou entendendo o mundo, e aprendendo novas linguagens.

Meu último autoembate foi indo ao teatro, em consideração a um amigo. A peça chamava-se As Mãos Sujas, texto de Sartre. Era só isso que eu sabia. Eu levei um amigo e uma forte amargura dos encontros perdidos, e outra vez me perdia no fundo dos meus sentidos, quando me deparei com os atores no palco, incorporando seus personagens, de um jeito afetado que eu achei que odiava e achava desnecessário e burguês, mas dessa vez me enxerguei ali. Porque eu descobri que sou assim. Expressiva para um caralho, não sei dizer meias palavras: esfaqueio palavras.

Por toda a peça, que falava de um Partido comunista e modos distintos de pretender uma revolução, apenas a carne me ardia. O personagem principal, que era a cara do Ariano Suassuna de setenta anos atrás, vivia num dilema existencialista, e dançava como eu danço, a música que, em desespero, dancei. Botava as mãos espalmadas nos olhos, como um monstro de Labirinto do Fauno, demonstrando a fraqueza de um homem e a vontade de ser de novo um bebê indefeso, irresponsável e dependente, como nós nos sentimos e queremos no momento de ápice da dor. Ele gritava, gritava para ser ouvido, porque, por mais que ali existissem camaradas e esposa, ele se sentia só. Se sentia um desamado. E via na ideologia seu motivo de ser. Um motivo combatido por aquele que foi o único que ele sentiu que o amou, e que ele mesmo matou.

As Mãos sujas. Texto de Jean-Paul Sartre e Direção de José Fernando Peixoto de Azevedo. Assistência e operação de luz: Guilherme Soares.
Foi lindo, chorei. Inclusive pela trilha sonora. E saí chorando pela chuva com amigos, e percebendo que eu estive onde deveria estar. O teatro não é o monstro que pintei. O teatro é a síntese de quem sou. Exagero. Dor. Sentimento. Oceano. Tormenta. Dança.

Ainda nessa sessão, a terapeuta me comparou com Ewá, a Senhora dos Cemitérios, que se transforma em névoa. Não consigo acessar no momento o livro Mitologia dos Orixás, mas ela não se sente completa no mundo dos homens e na materialidade, então vive como bruma. Achei isso lindo.

Sou criatura das sombras e do inconsciente, e minha iniciação em espiritualidade mesmo foi bem característica. A primeira vez que me senti em êxtase, foi no dia 31 de outubro de 2017. Um dia das bruxas. Um ano depois, prometi e cumpri que meu primeiro evento num espaço relacionado a arquétipos, seria o de Perséfone. Nada mais, nada menos, que a Senhora do Submundo, A Sacerdotisa do Tarot Mitológico, sobrinha e esposa de Hades, um deus não cultuado e mal visto por desconhecimento de seu poder e necessidade de ser: senhor da morada dos mortos, e responsável por fazer brotar as sementes enterradas no solo.

A psicóloga também me fez assistir a Malévola. Nem tenho palavras para comentar o resultado.

Gosto de tudo aquilo que afeta. Que abala. Eu sou um vulcão. O próprio Vesúvio transformando os citadinos de Pompeia e Herculano em cinzas. E das cinzas eu sempre retorno como Fênix: a águia dos romanos e o pavão dos hindus. Carcará. Bacurau, o pássaro noturno. O Corvo de Cronos.

E de Pompeia eu sou os gritos de Careful with that axe, Eugene, mas também sou o coro das celestiais vozes de A Saucerful of secrets, o canto para a minha morte. Porque sou eu mesma um pires cheio de segredos.

Escrever é vomitar os meus demônios e encará-los de frente. Renato Russo diz: não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas. Eu diria: não tenho medo do escuro, apague as luzes! Medo eu tenho dos meus anjos.
Eu sei de muita coisa que não vi.
Vocês também, eu sei.
Não se pode dar provas da existência daquilo que é mais verdadeiro.
O único jeito é acreditar. E acreditar chorando.
Esse show é feito em estado de emergência e de calamidade pública.
Trata-se de um show inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta essa que eu espero que alguém no mundo me dê.
É um show em tecnicolor, para ter algum luxo por Deus - que eu também preciso.
Amém - para todos nós.
Clarice Lispector e Maria Bethânia
O que será, que será? Que andam suspirando pelas alcovas Que andam sussurrando em versos e trovas Que andam combinando no breu das tocas Que anda nas cabeças anda nas bocas Que andam acendendo velas nos becos Que estão falando alto pelos botecos E gritam nos mercados que com certeza Está na natureza Será, que será? O que não tem certeza nem nunca terá O que não tem conserto nem nunca terá O que não tem tamanho... O que será, que será? Que vive nas idéias desses amantes Que cantam os poetas mais delirantes Que juram os profetas embriagados Que está na romaria dos mutilados Que está na fantasia dos infelizes Que está no dia a dia das meretrizes No plano dos bandidos dos desvalidos Em todos os sentidos... Será, que será? O que não tem decência nem nunca terá O que não tem censura nem nunca terá O que não faz sentido... O que será, que será? Que todos os avisos não vão evitar Por que todos os risos vão desafiar Por que todos os sinos irão repicar Por que todos os hinos irão consagrar E todos os meninos vão desembestar E todos os destinos irão se encontrar E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá Olhando aquele inferno vai abençoar O que não tem governo nem nunca terá O que não tem vergonha nem nunca terá O que não tem juízo...

Chico

13.11.19

30. Central / Heaven

The Empyrean é uma história que não tem nenhuma ação no mundo físico. Ela ocorre nos espíritos de todas as pessoas ao longo de suas vidas. O único outro personagem é alguém que não vive no mundo físico, mas está lá dentro, no sentido de que ele existe nas mentes das pessoas. A mente é o único lugar que nada pode ser tão verdadeiro para existir. O mundo exterior é apenas conhecido para nós como ele aparece dentro de nós pelo testemunho dos nossos sentidos. A imaginação é o mais real do mundo que nós conhecemos, porque cada um sabe em primeira mão. Ver as nossas ideias tomando forma é como ser capaz de ver o sol nascendo. Não temos equivalência ao grau de pureza disto no nosso mundo exterior. No mundo exterior, parece que cada um de nós somos uma coisa e sempre também uma infinidade de outras coisas. Dentro para fora e de fora para dentro são intermináveis. Tentamos achar uma forma de respirar.*
Considero o ano de 2009 como marco essencial para minha individualidade perante as pessoas em questões musicais. Passei a infância ouvindo o que meus pais ouviam, parte da adolescência ouvindo o que meus amigos ouviam. Mas, a partir de 2009, ou até um pouco antes, 2008, rompi brutalmente com tudo isso. Tanto, que demorei uns quase dez anos para me habituar com a música "social" novamente.

Acontece que desde 2006 ouço Red Hot Chili Peppers. E desde não sei quando a minha conexão com John Frusciante ficou mais evidente, em especial. Lembro de assistir algum programa da MTV que comentou sobre o videoclipe Going inside, do disco To Record only water for ten days, e de vídeo dirigido por Vincent Gallo. Achei tão bonito que quis procurar. E achei o Gallo maravilhoso também, a partir daí. Na época, o vídeo só podia ser visto no Vimeo, se não me engano. Inacessível demais, coisa que todo adolescente que se sente incompreendido gosta.
Sabendo mais sobre Frusciante no meu navegador Mozilla Firefox, com Windows XP e internet discada - eu juro que sinto saudades desse tempo -, descobri sua relação com as drogas e a saída do RHCP em 1992. Mais que isso: descobri Niandra Lades and Usually Just a T-Shirt. E minha amiga Eve, a eterna Duchampiana. E meu disco favorito na época: Smiles from the streets you hold, que infelizmente não tem no Spotify. Com o Smiles pintei minha primeira tela, que por acaso se acabou nalguma chuva entre 2018 e 2019. Foi uma experiência única mexer com tinta e música sozinha num canto em cima da minha casa. Pena que não repeti mais.
Não é por acaso que esse blog tenha a mesma idade de minha relação com John Frusciante. Foi quando entrei no ensino médio e quando consegui meu primeiro estágio. Um pezinho para fora do mundo estudantil. Um primeiro florescimento de mim mesma. Ou mais um. Passava os dias no estágio, naquela sala branca de informática, mexendo com html e ouvindo John Frusciante. Todos os dias, todo o tempo. Quando meu avô morreu, em 2007, e isso me fez perceber que ouço Frusciante há pelo menos 12 anos e não 10, minha música de luto era Song to sing when I'm lonely. Não chorei a morte dele em doze anos. Me entupi de música no lugar.
2009 foi o ano em que John Frusciante definitivamente saiu do Red Hot Chili Peppers. Eu gostei. Foi no mesmo ano em que, em janeiro, ele lançou este que é meu disco favorito: The Empyrean. Hoje, como estudiosa de tarot e símbolos, enxergo diversos arcanos na capa, que sempre me fascinou. Nela, deitado está Josh Klinghoffer, que o substituiu na banda.

Pois bem. Poderia falar horas sobre esse disco, como sua primeira canção está em Love, de Gaspar Noé, e aquela em que esta foi baseada, Maggot brain do Funkadelic, também. Poderia falar sobre o cover de Tim Buckley, Song to the siren. Da fluidez das canções, que mais parecem aquele buraco de minhoca de Donnie Darko. De como encontrar alguém que saiba quem é John Frusciante é como enxergar meu próprio rosto no espelho.
Well, I don't have my own face
So c'mon and be replaced
Theres a future thats calling
But I don't see it coming
Esse disco está entre - se ele mesmo não for - meus discos favoritos da vida. Não é à toa meu nickname, que perdura há dez anos. Meu nickname é minha persona. Meu nickname sou eu.
We should be thankful who we are!
Whether we know ourselves or not!
Abaixo, algumas reflexões de Frusciante sobre o disco traduzidas.

"Ele percebe que a confusão e a dor tem sido a maioria das causas que fazem sua vida útil e prazerosa como as coisas que ele confundiu por pura bondade. Tudo aqui contém sua contradição e, portanto, para cima e para baixo, esquerda e direita, para a frente e para trás, feliz e triste, prazer e dor, são duas coisas, que são uma. E todas as coisas que acreditamos ser separadas são uma coisa. A ilusão de separatividade é a causa da dor, e também é parte da causa de todas as obras de beleza que as pessoas tem criado."* - Isso até lembra o Uno primordial, comentado por Nietzsche, em O Nascimento da tragédia. Comentei trecho no post anterior.

No mesmo fatídico 2009, me lembro de criar uma conta de e-mail no hotmail. Minha música favorita no disco é Unreachable, mas me lembro de ter, na hora, tentado o usuário centralheaven (por causa das músicas Central e Heaven), que deu certo. E que ficou, para sempre.

30. Uma música que te lembra de si mesma
Tudo o que importa para o seu "verdadeiro eu", é fazer o que você está aqui para fazer. Para estabelecer o contato direto com o seu "verdadeiro eu" e seguir o curso de ação que o seu coração dita. Não quer dizer que isso signifique que você vai ser sempre feliz e contente, mas ao longo do caminho você vai conhecer o significado de pura felicidade no momento em que ela chegar.*

THE EMPYREAN. Traduzido por Universo Frusciante.

7.11.19

Tudo em ruínas

O salão em seus melhores dias
Desde a universidade eu tenho uma teoria de que entro num lugar ou situação para ver sua destruição acontecer, paulatinamente. Me veio isso na cabeça a partir do momento em que o bar do Márcio se transformou num salão de eventos, e depois numa academia fitness.

Otimistas diriam que é só o mundo se atualizando. Saudosistas - ou pessimistas, dependendo do grau -, têm a mesma visão que eu. Saturnina. Digna do arcano A Torre.

O bar do Márcio era muito importante para mim. Eu era calada na universidade, minha amiga Bia não descia para comer. Eu ia sozinha e ficava bem longe dos colegas de turma, dos professores, ou mesmo de qualquer outra pessoa. Sentava no balcão do bar e pedia: um café com leite e um pão na chapa, por favor. De segunda a sexta-feira. Às 9 horas. Só faltava bater ponto. Um Rudi Angermeier. Em menos de um mês, Márcio nem me ouvia mais. Me avistava no meio dos alunos de outros cursos - todos de humanas, esse era o bar dos renegados -, e já dizia "já vai, amiguinha", ou algo do tipo. Decorou. Me senti importante e querida, tenho mania de me afeiçoar a garçons. Bares eu já amo de graça desde pequena.

Mas aí a Roda da fortuna girou e a Torre se despedaçou. Não sei o que foi feito de Márcio. Foi lá meu primeiro dia do meu primeiro namoro. Foi lá que meu amigo Henrique me chamou de Bukowskiana, porque eu detesto me relacionar com pessoas. Foi lá que meu professor Jean me abordou enquanto eu ouvia Shine on you crazy diamond. Foi lá que, quebrando minha própria regra, pedi ao Márcio, às 9 da manhã de uma segunda-feira, uma dose de Rum. Dividi com o Samir e passei a aula do professor Bas'Ilele escrevendo tudo torto.

Essa foi minha primeira ruína significativa.

A Universidade Camilo Castelo Branco era referência e tradicional na Zona Leste de São Paulo. Situada no caminho entre São Miguel Paulista e São Mateus, ali por Itaquera, ela foi fundada em 1968 e sempre foi muito bem elogiada nos cursos de Pedagogia e principalmente Odontologia. O abençoado que arrancou meus quatro sisos não nascidos em 3 horas de cirurgia, e que me chamou de corajosa e de maxilar e gengiva fortes, é professor desse curso até hoje, mesmo que a Universidade agora se chame Brasil e tenha ligações financeiras escusas com CBF, Flamengo e afins.

No ano em que comemoraria seu Jubileu, suas Bodas de Ouro consigo mesma, ela mudou de nome. Até no meu currículo Lattes. Sem minha permissão. Antes disso, quando eu estava em meus últimos anos, os professores já se despediam aos pouquinhos. Era época de copa do mundo e construção do Estádio do Corinthians, e eu vi todo aquele terreno se transformar. Vi o Terminal Corinthians-Itaquera crescer. Meu ponto de ônibus mudou daqui pra lá duas vezes. Todo esse caminho e essas transformações foram embalados por Pink Floyd em meus ouvidos. Até que me formei, me separei do meu primeiro namorado, mudei de rota e fui pra Zona Norte e depois Sul. Quase não me lembro mais dos cochilos que eu dava ouvindo Echoes, do sol batendo nas frestas das Eritrinas no inverno ali no meu querido e confidente Parque do Carmo. Quase não me lembro mais da sensação de flutuar ouvindo Summer '68. Quase não me lembro mais... Faz tantos anos.

O Castelo caiu.

De lá eu fui para o Carandiru. Um eterno retorno em minha vida. Coisas cruciais me aconteceram e o núcleo foi aquele pavilhão. Dois cursos. Muitas histórias pra contar. Fiz o curso técnico em Museologia emendado com a universidade. O intervalo entre eles foi a copa do mundo de 2014, apenas. Em outubro eu já queria desistir do curso, muito ruim. Os professores todos me irritavam. Boa parte dos alunos também. Mas arranjei meu estágio em um museu e tive que continuar, para ter certificado. Terminei o curso cuspindo para cima e dizendo: jamais pisarei aqui novamente.

Não preciso dizer que caiu bem na minha testa, né? Um ano depois estava eu lá, novamente, fazendo biblioteconomia. Uma bolha de felicidade em toda a minha história acadêmica. Uma turma quase sem defeitos. Professores amigos. Uma biblioteca viva. Nós demos, modéstia a parte, vida ao Carandiru. Graças ao Lucas, principalmente. Mas nós éramos seres sociais querendo mudar o mundo, fazer eventos, críticos. Felizes. Teve Festa Junina. Halloween, festa de encerramento. E eu me acabei de chorar nessa festa última, ouvindo Sangue latino, e me sentindo órfã do Carandiru. Tinha ali me redimido pelo ódio que senti. Achei que seria um ótimo desfecho para uma história. Mas teve outra.

Esse semestre o curso de museologia não abriu vagas. Burrices burocráticas egoicas. É um edifício que uniu, por pouquíssimo tempo, essa tríade poderosa de preservação de memória e informação: Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia. Mas estamos falando de egos coordenando, gestando, curando essas áreas. Ninguém se une. Todos são uns melhores que os outros - menos a biblioteconomia, ela é quase 100% humilde e colaborativa -, mas igualmente incompetentes em se ajudar e pensar maneiras de barrar a burrice administrativa estadual aliada a desejos egoístas corruptos de quem detém poderes nessas bolhas profissionais.

Engraçado pensar que minhas histórias, que definiram minha vida profissional e meu círculo de afetos até aqui, têm morrido pouco a pouco estruturalmente. Dia 3 de junho estive na Etec para ver Marina e percebi a biblioteca apagada, fechada, sem a salinha de estar que Lucas tão doce e competentemente organizou. Era só mais um depósito de livros de uma escola qualquer. Até a lanchonete, que tinha seus sanduíches muito mais saborosos que qualquer Subways, fora desmontada. Havia apenas uma exposição feia pela metade sobre a Frida, umas pessoas zumbizando pelo pátio, e novamente aqueles cartazes horrorosos em craft pendurados na escada. O que vi ali foi um cemitério. Duplo cemitério, se pensarmos a história original do pavilhão. Credo.
Etec Parque da Juventude
Carandiru, 3 jun. 2019
A biblioteca
Aqui onde trabalho, a mesma coisa. E é essa parte que me fez querer escrever esse texto. Há um salão, que já foi usado para ballet, e que provisoriamente foi nosso setor administrativo enquanto reformavam o forro do nosso pavilhão original. De vez em quando entro lá para me olhar no espelho das bailarinas, porque sou vaidosa e converso comigo mesma, ou mesmo danço no escuro. Ontem entrei para me olhar porque minha roupa estava bem bonita e minha postura estava altiva. E eu sempre entro nesse salão com nostalgia. Hoje ele está sem forro, porque a obra foi parada pela metade. Meu pavilhão original foi concluído, e na hora da reforma deste, tiveram que parar a obra. Então você enxerga o telhado, tem muita madeira, poeira, e tudo mais. Patrimonialmente horroroso, mas esteticamente lindo.
Caos: A beleza da destruição
Entrei ali e me veio uma tijolada abstrata na cabeça: em janeiro eu estava ali, ao lado da sacada, sentada em minha mesa, provavelmente morrendo de dores nas pernas, mas feliz, observando a Resedá! Com Marina, Stella e Bia, conversando sobre os deuses gregos, organizando aulas e suspirando por Hades (Hades, no meu caso, porque sou gótika que dança nas trevas e adora um submundo com suas sombras). Era um local improvisado, desconfortável para muitos, caótico, com cara de antiquário bagunçado, mas era tão compatível com o que eu mais gosto de experienciar na vida!
A origem de Helenita Resedá
Tanta coisa aconteceu nesse ano, que parece que janeiro foi em outra década. O salão está com a obra em suspensão, mas será reformado. Uma construção na destruição. Toda construção destrói algo, é o que tenho concluído nos últimos meses. E li algo parecido em alguma página esotérica que já nem sei qual mais. Mas até Nietzsche falou. E se ele falou, tá falado.
"O que Nietzsche expõe nesta obra¹ é sua intuição e sua experiência da vida e da morte. Tudo é uno, nos diz. A vida é como uma fonte eterna que produz constantemente individuações e que, ao produzi-las, se desgarra de si mesma. Por isso a vida é dor e sofrimento: a dor e o sofrimento de ver despedaçado o Uno primordial. Mas ao mesmo tempo a vida tende a reintegrar-se, a sair de sua dor e reconcentrar-se em sua unidade primeira. E essa reunificação se produz com a morte, com o aniquilamento das individualidades. Por isso a morte é o prazer supremo, enquanto significa o reencontro com a origem. Morrer não é, contudo, desaparecer, mas somente submergir na origem que incansavelmente produz nova vida. A vida é, pois, o começo da morte, mas a morte é condição de nova vida."
Tantas torres e tantos castelos tombaram. Me pergunto se minha torre caiu, se continua em queda livre, se está intacta. Já não enxergo mais. O fato é que tijolos estão despedaçados pelo chão.

1. Andrés Sánchez Pascual, El Nacimiento de la tragedia, p. 19-20, Alianza Editorial, 2004, Madrid - citado em NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia. São Paulo: Escala, s/d.

28.10.19

Grandes esperanças

Beyond the horizon of the place we lived when we were young
In a world of magnets and miracles
Our thoughts strayed constantly and without boundary
The ringing of the division bell had begun

Eu tinha um texto muito bom sobre High Hopes que achei que havia guardado, mas não encontrei. Encontrei foi outro, de oito anos atrás, em que escrevi uma frase que cabe tanto no dia de hoje, só que é tão mais raivosa, que me assustei comigo mesma.

Mas vamos ao que interessa.

The Division Bell¹ é o primeiro disco que comprei (cd) do Pink Floyd, e costumo ouvi-lo de tempos em tempos, pois prefiro o período pré-The Dark side of the moon. Mas ele tem umas pérolas maravilhosas que combinam com certos estados de espírito meus que se ativam de vez em quando.

O texto que eu buscava falava de High Hopes, que por muito tempo foi minha música favorita da banda - tecnicamente é Summer '68, mas em questões de alma é A Saucerful of secrets. E falando em A Saucerful of secrets, que é a canção a ser tocada em meu velório, como já comentei aqui, High hopes nesse texto ilustrava o meu mundo post-mortem. E ontem eu estava fazendo umas coisas sozinha e ouvindo esse disco e me lembrei, quando vi a capa. Não sei se o design de Storm Thorgerson ou o videoclipe e a letra influenciam, até porque não costumo assistir e ler, mas minha vida após a morte é tão maravilhosa quanto as imagens dessa obra.

Quando era mais jovem, mais precisamente no final do ensino médio, passei a ouvir Pink Floyd. Antes eu achava uma banda xis barulhenta, muito azul-e-rosa-eletrônica. Mas aí o fervor político brotou e The Wall é uma peça que vem ano, vai ano, você entende ser mais complexa do que um simples mandar o professor ir à casa do caralho (mando até hoje). Só que High Hopes me pegou pelo pé, ainda mais quando assisti ao videoclipe, porque é muito um pedaço de mim que nem sei explicar. Vou tentar reproduzir o que me lembro do texto perdido, mas a sensação é a mesma.

O campo aberto, os homens com pernas de pau e aqueles com tecidos enormes formando uma foice com o vento, é uma imagem que abre um buraco negro no meu peito. A guitarra havaiana, esse som contínuo que parece que sobe aos céus em espiral de vento gélido, parece que puxa minha alma do peito como se fosse um fio prateado sendo tecido pelas moiras.


E eu ouvia esse disco, e imaginava uma estrada, curva para a direita, onde, do lado direito há uma montanha, e do esquerdo uma planície, e mais distante ainda uma floresta densa. Nesse mundo, que eu percebi que era meu mundo após a morte, só tinha eu. Não tinha aves, não tinha mamíferos, nem peixes. Nem gente, o que é muito importante. Meu mundo após a morte seria o mais absoluto silêncio, eu deitada numa pedra nessa planície observando as nuvens passarem, e nada mais.
Como sou adepta a viagens de carro - era, inclusive, meu meio de sonhar acordada quando criança -, quando vejo essa estrada e essa colina, é como se eu estivesse em um. Mas também não há carro. Nem portas, nem teto, nem janela. Nem eu caminhando. Então, deduzo, é minha alma vagando por esse espaço vazio, que me dá uma puta vontade de correr. Quando vejo espaços vazios muito amplos, sinto vontade de correr até me estabacar em algum lugar.
Então essa liberdade do vazio me acompanha desde muito pequena. Eu me lembro que o que me chamou a atenção para os estudos, antes da matemática e da história, foi a ciência. O primeiro livro que eu pegava quando chegava em casa era o que tinha os planetas, porque eu namorava Júpiter e sua grandeza, e sua mancha ali bem no meio das listras. Amava perceber como o universo é tão infinito e nós, tão ínfimos. Não sei para vocês, mas eu me sinto segura sem barreiras. Uma coisa que me alivia a ansiedade é olhar para o céu e saber que não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. Então, saber que existem estrelas maiores que o sol, buracos negros que sugam o que vier pela frente, não sei quantas luas em Saturno, e que a velocidade da Luz é algo mais legal que o tempo do relógio, me conforta demais. Parece que todos eles dizem "fica tranquila que estamos aqui olhando por você, mas você ao mesmo tempo não é ninguém". Se faz sentido? Para mim faz, e é o que interessa.

Eu ia à biblioteca da escola em algumas aulas e sempre buscava o Guia dos Curiosos, e lia sobre isso e sobre duendes, incubus, succubus... Tudo que arranhava meu coração me fascinava. E High Hopes, estando num campo aberto e vazio de gente e de sons, só o vento o céu, a terra e eu, é como um sopro no peito, como quando enchemos uma bexiga. E nesse encher essa bexiga que é o meu coração, é como se ele parasse de bater, e eu flutuasse com esse ar todo, frio, leve.


There's a hunger still unsatisfied
Our weary eyes still stray to the horizon
Though down this road we've been so many times
The grass was greener
The light was brighter
The taste was sweeter
The nights of wonder
With friends surrounded
The dawn mist glowing
The water flowing
The endless river
Forever and ever

1."The Division Bell é o décimo quarto álbum de estúdio da banda britânica de rock Pink Floyd. O disco foi lançado em 28 de março de 1994 [...]. Suas canções foram escritas principalmente pelo guitarrista David Gilmour e pelo tecladista Richard Wright e tem como principal tema a falta de comunicação, junto com outras questões como o isolamento, conflitos e autodefesa."
* As imagens selecionadas me lembram novamente da "Dança da morte", encenada em O Sétimo selo de Ingmar Bergman.

3.9.19

Whiplash, FNM* e a mitologia: Dédalo, Talo e Ícaro

Esse texto contém muitos spoilers do filme Whiplash.
Man was born to love
Though often he has sought
Like Icarus, to fly too high.
And far too lonely than he ought
To kiss the sun of east and west
And hold the world at his behest
To hold the terrible power
To whom only gods are blessed
But me, I am just a man!
Peter Paul Rubens - A queda de Ícaro, 1636.
Na mitologia, Dédalo foi um ferreiro instruído no ofício diretamente pela deusa Atena, portanto um excelente ferreiro. Ele tinha um sobrinho, chamado Talo, que era um prodígio: já aos doze anos praticava o ofício, e tinha ideias maravilhosas; uma delas foi a criação do serrote, a partir de uma espinha de serpente (ou peixe). Essa prodigalidade do menino causou inveja em Dédalo, que o matou.

Fugindo da punição, Dédalo chega à ilha de Creta, dominada pelo Rei Minos. Por ali viveu anos em trabalho e boas recompensas, até que Minos descobriu seu crime e o prendeu, junto ao filho Ícaro, no labirindo construído para conter a fera Minotauro.

Mais uma vez em fuga, Dédalo constrói dois pares de asas, para si e para o filho, com penas de aves trançadas e coladas com cera de abelha. Na hora de partir, adverte o rapaz: não voe tão próximo do mar, para não molhar e tornar pesadas suas asas; nem voe tão próximo do sol, para não derreter a cera que prende as penas.

Ícaro, ao alçar voo, se deslumbrou com a altitude e possivelmente com o sentimento de liberdade de estar em pleno céu, acima do labirinto, das cidades e das ilhas gregas. Então desobedeceu Dédalo, e voou perto demais do sol. Seu pai estava certo, e a cera derreteu: Ícaro caiu no mar e morreu afogado.¹

Ao buscar a história, eu pretendia falar apenas de Ícaro. Mas então entendi sua ligação com Dédalo, que teve uma aventura anterior.

Ícaro: apenas um homem

Deu que ultimamente Just a man tem sido um afago e um tapa na cara por aqui. E coincidiu com o filme que me foi indicado, Whiplash. Nunca dei tanta bola para essa produção tão importante que foi comentadíssima em 2014 e eu nem acredito que esse filme tão novo foi lançado há cinco anos.

Assistindo Whiplash, já senti que faria par com o professor, não importa toda a questão dele e seu perfeccionismo que excede limites de convivência com seus aprendizes. Algo em mim, e Freud explica, flerta com o autoritarismo, e eu sou absolutamente perfeccionista, de um modo que me travo porque acho que devo estudar muito para já fazer a coisa completa e irreparável. Mas não é assim que funciona.

Em Whiplash, o professor comenta com o aluno (eu não decoro nomes de personagens) que duas palavras são algo que não consta em seu dicionário, não lembro se ele comenta que são um "crime", mas algo pesado assim. Essas duas palavras são good job (bom trabalho). Quem ouve essas duas palavras e recebe um tapinha nas costas, segundo ele, fica satisfeito, se conforta, e não pretende ir mais além, já que o trabalho foi "bem feito". Então, tudo fica ali na média.

Whiplash, 2014.
O garoto, o aluno. Eis a questão. Desde o início eu o assisti com a sobrancelha direita levantada, em alerta. Primeiro, um rapaz dedicado também buscando a perfeição. Depois, um presunçoso com sorriso de canto de boca se achando o próprio Talo, o menino-prodígio de 19 anos numa banda profissional. Ou, o próprio Ícaro, voando perto demais do sol. Nisso, o aluno se acha melhor que todos os outros bateristas, se sente querido pelo Professor com P maiúsculo, termina um namoro que poderia dar certo, porque sua meta de vida é apenas esta: ser o melhor baterista, como seu ídolo Fulano de Tal² (assistam o filme e ouçam essas músicas, são maravilhosas).

A partir do meio do filme os dois se lascam. O aluno, porque diz sobre outro aluno tomar seu lugar "você vai aceitar essa merda na sua banda?" (muito eu em diversos momentos), se machuca para não perder a hora e tem uma crise nervosa (eu também, socorro). O professor, porque o aluno o denuncia por assédio.

No fim do filme parece que o jogo vira (não é mesmo?), e os dois se desafiam no palco num solo insano que vale muito a pena assistir.

Enfim, subestimei um filme que tem reverberado em mim há dias. Sou a personificação do desta água não beberei. Porque nesta água eu me afogo.

Já não gostei do aprendiz sabendo que ele representava a mim. No meu emprego. Na minha vida. Na minha inteligência. Presunção é uma coisa que muitos jovens têm, por não compreenderem os mais velhos, mesmo que seja fato que o jovem venha revolucionar e o velho conservar. Marx já dizia.

Agora que cheguei aos 27 anos, nesse limbo e nesse clube dos que nem sempre sobrevivem, tenho revisto minha vida e bodeado tanto da juventude, como de mim mesma. Então estou do outro lado do prisma, vendo as coisas por um ângulo inédito.

O jovem, qualquer jovem, generalizando sem vergonha mesmo, e eu, temos essa presunção de saber. Eu sei, dizemos, porque, sim, tecnicamente sabemos. O cérebro juntou o lé com o cré e produziu um resultado. Mas saber é diferente de perceber. Perceber é aquele Eureka que temos muito de vez em quando. Que, quando temos, os velhos sorriem com cara de sábios, uma mistura de eu avisei, com eu estava esperando esse momento, aproveite.

O aluno tomar no cu, e o professor ter colaborado para isso, mostra essa baixada de bola e essa crista sendo murcha pela mão do mais sábio. Mas, o aluno desafiar o professor, e deixá-lo boquiaberto com seu potencial e seu esforço, mostram que o aprendizado não só houve, como foi superado.

Então o aluno seria tanto Ícaro, o que desobedece, se deslumbra, se acha, cai e morre; como Talo, o que cria, se aperfeiçoa e se supera.

O professor poderia ser Dédalo. Em sua relação com os alunos, inclusive o que é dado como morto, posso compará-lo com o excelente ferreiro. Não pela inveja do sobrinho, mas por causar a morte de jovens por achar que as coisas devem ser como ele imagina que sejam, por querer ter o poder sobre o ofício.

Em sua relação com esse outro aluno também, como pai de Ícaro que o adverte que, ao voar alto demais, a queda é grande (ouvi mainha falando isso).

Também sou como o professor. Nessa minha busca pela perfeição, não só vou desenfreada no limiar entre a liderança e o autoritarismo, o que causa certas grosserias e disputas de poder no trabalho (que ridícula, KKKKKK), como me machuco por me travar e não pôr pra fora o que eu tenho de especial.

Esse texto, por exemplo. Em outros tempos, buscaria artigos e mais artigos sobre o mito, leria algo sobre o filme, buscaria imagens, colagens e o caralho a quatro. Mas acordei sem paciência para firulas, só querendo vomitar o que está aqui dentro do jeito que dá e o futuro a Deus pertence.

Mas, principalmente, sou Ícaro. Deslumbrada com tudo o que tenho na minha cabeça, nas minhas mãos, no meu coração, nos meus ouvidos, nos meus olhos, na minha pele, no meu peito, na minha alma, no meu espírito, no meu ser, queimei minhas asas e caí no mais profundo do oceano, e tenho me debatido esperando manter o equilíbrio e conseguir nadar. Porque agora eu sei nadar, esse medo já está quase extinto.

O texto, a constatação, o clímax do filme, o momento em que estou vivendo e a mitologia me gritam o seguinte: todos são momentos em que se necessita de reconhecimento de si, humildade e trabalho. Ora et labora. Senão, fodeu.


* FNM é a sigla para a banda Faith no More.
1. GRAVES, Robert. Dédalo e Talo. In: Os Mitos gregos. Editora Nova Fronteira. p. 535.
2. Não fui buscar quem era Fulano de Tal nem o nome dos personagens, pois se o fizesse esse texto não sairia nunca, nessa busca perfeccionista que eu tenho alimentado por 27 anos.

29.4.19

O sol das 15 horas

Fotografias da colagem por mystic jupiter; música: Pink Floyd - Grantchester meadows
Existe um período mágico no dia. Um momento em que parece que a vida se desnuda de todas as máscaras, e retorna à simplicidade inicial, ancestral, coletiva e humana. Esse momento é o das 15 horas.

Desde pequena, seja por memória afetiva ou por pura abertura dos seis sentidos, eu consigo parar e sentir paz. Mesmo em meio a uma crise de ansiedade. É ver o Sol dando sua primeira evidência de um tchau e anunciando a chegada da Lua. É o momento em que a mãe chega em casa para abraçar com toda a força e lembrança aquilo que é seu.

É o momento em que costumamos tomar café. Lá em tia Rivanda, nas últimas vezes em que fui, era avisada deste momento assim: ☕ - via whastapp. Aqui em mamãe, é o instante em que muitas vezes ela chega com queijos, pães, biscoitos lá da Casa do Norte do Seu Zé. E, no passado, quando papai chegava da casa dos irmãos ou primos na rua de cima anunciando com Eeeeeeeeeeu sou a mosca...

No serviço, tudo pode estar ruim, péssimo, desandando. Mas nada é eterno quando sei da hora do café. Tem gente que pensa no almoço, tem gente que pensa na hora de ir embora. Eu penso naqueles 15 minutos vendo o Sol do lado Oeste, já morno, cansado. Talvez isso o faça diferente da manhã: a morneza do Sol matutino é uma preguiça ativa, uma juventude calorosa. A morneza da tarde é quase uma frieza, um sono e tranquilidade de dia aproveitado (por ele mais do que por nós - ou também por nós, mas nós que somos, talvez, mimados e ingratos demais para ver que cada dia tem suas vitórias).
Meu quintal e uma caneca que na verdade não uso, mas é linda.
Hoje fui lavar uma panela para esquentar o leite e vi a sombra luminosa do sol pela janela da cozinha. É também o momento do canto de alguns pássaros. Quando pequena, tínhamos muitos, papai chegou a ter trinta de várias espécies numa casa de dois cômodos. Acostumei com suas vozes de um jeito que já tratava todo aquele som como silêncio. Mas é nas preguiças solares que seus cantos são evidentes. (Agora não tenho nenhum, não se preocupem).

Acho que o momento foi feito para eu escrever aqui. Me lembro da primeira vez em que prestei atenção em Summer '68, e foi num final de tarde, cuidando de um passarinho. Hoje, fui buscar algo para ouvir - Led Zeppelin não estava combinando -, e vi pelo Spotify que meu camarada Rafael estava ouvindo Sysyphus, Pt. 4, do maravilhoso Ummagumma. Ele inclusive tem um texto sobre esse disco que nunca me esqueci.

Esse disco à primeira, milésima vista, pode ser um pouco "diferente" para quem não mergulha nas profundezas flúidas floydianas, mas faz total sentido se você considera toda essa questão do sol, do orvalho, das folhas úmidas, do cheiro do ar fresco, dos sons mais mínimos de aves, insetos. Se você observa o musgo na raíz da árvore, a flor balançante, e percebe os silêncios.

Falando em silêncio, eu percebi muito bem esse daqui. E as moscas na janela me hão de ser lembradas agora pela singela Several species of small furry animals gathered together in a cave and grooving with a pict! - sem o triste fim da música, obviamente.

14.4.19

11. O cordel estradeiro

Meu primeiro due tone: Cordel do Fogo Encantado por Jornal Portal do Sertão
Aqui é cantado um nordeste que alguém poderia até dizer romantizado, mas acredito que seja algo mais profundo: um fragmento de nordeste real interligado fortemente com o seu passado, passado do nosso Brasil. Assim como podemos ver em Interestelar, uma sobreposição de temporalidades no eterno presente.

Tenho lido Sérgio Buarque de Holanda, estudado Gilberto Freyre, refletido minha própria visão sobre a terra dos meus pais a partir das incongruências, complexidades e paradoxos dos referidos autores, lembrando de conversas com minha irmã, e de representações do Nordeste em outros locais, como o Sudeste, de quem sou filha (por ocasião, e não por merecimento). Peguei aqui Os sertões para me inspirar de alguma forma e ter o que citar e o que dizer... Mas eu apenas digo a vocês que meu Nordeste é uma Macondo brasileira. Não por imitação, já que o Nordeste é o lugar mais original deste mundo. Original por ser atemporal.

Este, por mais que não seja o, é um nordeste. Nós possuímos fragmentos de um passado colonial, e mesmo feudal, ainda vivos no presente. Não só herança moura, européia, mas africana, americana. Fortemente. Algo que, por mais que a globalização o imperialismo avance, de alguma forma ainda não foi perdido. Está no Maracatu, relembrado no manguebeat, está nos artesanatos que os gringos e os paulistas adoram comprar, mas que não calam sua xenofobia por aí. Está nas igrejas tricentenárias, nos engenhos persistentes, nas memórias dos meus (nossos) pais, tios, avós. Nos filmes de cangaço, nos sertões de Euclides, nas Vidas Secas de Graciliano, nas Bahias de Jorge Amado, no cheiro da terra, lenha, gado, borralho. No som do chocalho. Nos juazeiros e umbuzeiros. No céu aberto e escancarado, caindo sobre nossas cabeças. No r rasgado, na polidez do vocabulário, na genialidade do repente, na talhada dos cordéis, da Pedra do Ingá, da Boca, do Lajedo de Pai Mateus, nas Trilhas de Sumé. Na Paraíba masculina (sim) mulher-macho (sim) sim, Senhor!
Eu também sou cangaceiro
E o meu cordel estradeiro
É cascavel poderosa
É chuva que cai maneira
Aguando a terra quente
Erguendo um véu de poeira
Deixando a tarde cheirosa
11. a song that you never get tired of (uma música da qual você nunca se cansa)
Cordel do Fogo Encantado é uma banda teatral - "um grupo cênico-musical, compartilhando o teatro e a poesia oral e escrita dos cantadores e ritmos afro-indígenas da região" - nascida no ano de 1997 em Arcoverde, Pernambuco. Conheci ano passado, provavelmente porque Lirinha, o vocalista, é componente da trilha sonora de Lisbela e o Prisioneiro. Curiosamente, na mesma semana em que conheci a então falecida banda, eles voltaram! E com tudo, parece.
"Cordel" é sinônimo de história de um povo em forma de poesia.
"Fogo" é o elemento mais representativo do lugar de origem e da intenção músico-poética inconstante e mutável do grupo.
"Encantado" ressalta a visão fantástica e profética dos mistérios entre o céu e a terra.

Leia os outros textos do 30 day music challenge aqui.

7.3.19

O dia em que me permiti uma adolescência tardia

É isso, pessoal. Ela volta. A gente diz vaza, fia!, e a danada da ansiedade não arreda o pé. Pirracenta, ela nos espia pelas costas, dando aquele arrepio gélido, por motivo nenhum, só porque gosta de atazanar.

Daí eu pensei em ouvir Genesis. Mas em dias muito péssimos eu estava ouvindo The Lamb lies down on Broadway on repeat, então ouvir hoje foi atiçar mais o fogo da maledetta. Fui fazer alguns nadas no twitter e li uma história muito boa, que me fez querer ouvir quem me traz lembranças boas, que é simplesmente o senhorito David Robert Jones. Coloquei aquele disco lá que todo mundo se amarra, e continuei lendo a divertida história. Me animou.

Me animou mais quando começou o melhor disco de todos os tempos dele, que obviamente não é o outro, mas sim Hunky Dory. E eu pensei, "eu preciso imprimir a capa desse disco e deixar bem na minha cara quando acordo todas as manhãs. Que se dane como é cara uma tinta de impressora Epson."
fui lá e pesquisei. imagem: minha mão, artrage e caneta+mesa digitalizadora
Então essa foi minha artezinha do dia. Brigar com a impressora para ela funcionar, imprimir a capa do David numas folhas amassadas de papel fotográfico do tempo da minha irmã. Mas se você pensa que isso foi final feliz o bastante, veja só, repare, o que encontrei buscando uma simples e bela capa de disco:

por favor, meu querido
Então foram duas impressões, três alfinetes, um prego e um martelo. Et voilà!


quando você brinca desesperada no canva e sai algo no mínimo interessante ♥
A parte da adolescência ia ser mais acentuada porque lá no whatsapp do cê, começaram a conversar sobre filmes do Tim Burton (hahaha isso é tão eu nos anos 2000), e me deu uma saudade de Beetle Juice. E elogiamos Marte Ataca! (tudo com Jack Nicholson é bom), metemos o pau em Alice no país das maravilhas (é uma bosta mesmo, indiscutivelmente). A questão é que eu veria Beetle Juice, se não passasse das dez, se tivesse na netflix, e se eu não fosse trabalhar amanhã. Com preguiça de baixar (no final das contas acabei baixando), fui fazer outras coisas que nem me lembro mais.

eu lidando com a minha ansiedade 24/7
Mas decidi fazer um mimo por dia, bem ou mal feito. Para mim ou não. Algo feio-bonito, já que está na moda entre os jovens (obrigada, pessoal). Quero entrar na onda, não me importar, ou me importar com algo que me faça esquecer o friozinho nas costas da senhora ansiedade.

Se os fantasmas se divertem, por que então eu, que estou viva, não? 👩💀👻


Esse é um daqueles posts que a gente faz graça mostrando superação, mas na verdade está escrevendo para se fazer acreditar. Mas a gente tem que manter a pose perante o inimigo, né?
© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo