17.11.18

Não é coisa de momento

Eu sempre quis ser aquelas mocinhas sensíveis minimalistas e naturalistas que eu sigo em blogs singelos por aí, que ouvem Loreena McKennitt e apreciam Beatrix Potter. Até porque eu aprecio tudo isso, como com os olhos. Eu queria ser Lisbela. E até que sou. Também devoro os filmes apaixonados e as feições dos personagens principais, engulo suas histórias até revestir-me delas como se eu mesma fosse daquele mundo.
Beatrix Potter - The Story of Miss Poppet, 1906
Mas eu também sou Inaura. Desmantelada, esbaforida, desesperada, angustiada. Apaixonada. Também sou rancorosa, sinto inveja de Lisbela e de Leléu, quero matar meu Frederico Evandro e seguir sozinha pelo mundo com uma bala marcada com uma cruz rezando pelas almas que encomendo a Deus.

Estou participando de encontros femininos que discutem a imagem da mulher através da história. Isso dialoga com  minha primeira disciplina da pós graduação, inclusive. A mulher, pelo patriarcado, foi separada em pelo menos duas: Eva e Lilith, Maria e Madalena. Ou Eva e Maria, genericamente. A pecadora e a mãe. Assim é no filme de Guel Arraes, e em tantas outras histórias teatrais, ou mesmo novelas fascistas da Guerra Civil Espanhola: a mocinha, correta, pura, cândida, em tons pasteis e timidez. A vilã, ou anti-heroína, carnuda, em tons de sangue, segura de si e gostosa.

Eva e a Serpente (em algumas histórias a serpente é Lilith)
Sempre me senti muito mais Inaura. Por mais que socialmente possa até ser vista como Lisbela. E sempre quis ser Lisbela, mas quando estou perto disso me sinto animal preso e com raiva. Como um gato, que deita de barriga para cima para receber um afago e ronrona... Até lhe tocarem num ponto em que não gosta e meter patadas e mordidas.

Sempre quis ser dona de mim. Não aceito conselhos, a menos que eu os peça e que sejam-me úteis para eu aprender sozinha o que quero fazer. Detesto depender dos outros porque sei que sou autoritária e quero as coisas já, ou assim, assim e assado. Para não haver desavenças - e eu sei que estaria errada -, já faço eu mesma porque assim se der xabu já sei que a responsável sou eu. E se tiver pressa, será no meu ritmo. E se tiver gosto, será de meu agrado.

Então assim eu decidi o que queria ser, decidi que não queria dinheiro nem pensão, por mais que merecesse e fosse legalmente justo. Porque eu sei que quem ajuda tem o mau costume de cobrar. E eu não aceito ajuda que me seja cobrança, que me prenda, que me limite.

Tenho vivido limitada, enjaulada, humilhada, com a desculpa ou motivação de que estou também aproveitando desses contratos completamente desiguais. Fui enraizando essas desculpas até não perceber os vários tipos de exploração que venho recebendo, em todos os campos da vida. Conscientizar-se disso é doloroso, porém um acordar. E esse acordar é violento. É uma tigresa enjaulada batendo nas grades, balançando a jaula prestes a cair. Porque quem explora, diante de seu conforto que o poder carrega, não percebe que as amarras não são eternas, não são nem fortes.

Basilica di Giunio Basso, séc. IV d.C.
Mas como um animal preso, o mundo lá fora, tão esquecido e desacostumado ainda é hostil. Então vê-se o cadeado enferrujado, o trinco aberto, e a pata ainda não empurra a portinhola para sair. Vai saber se há mais outra gaiola, e quão mais forte e resistente ela será, quão mais implacável?
Quando vi aquele passarinho na gaiola… Pensei que minha vida inteira, se eu ficasse, ia ser assim, vida de triste, de quem desejou, de quem quis de corpo e alma e, mesmo assim, não fez.
Osman Lins - Lisbela e o Prisioneiro
Eu sempre fui uma pessoa desmantelada, desorganizada. Algumas pessoas me chamam de organizada, mas acho que isso fica mais em pensamento do que em questões materiais. Eu sei fazer tantas coisas, mas não enxergo a mim mesma e minha força, então não termino nada. São livros, bordados, cadernos começados, nunca terminados. Jogados pelo chão. Assim como as vontades, que são tantas.

Queria ser, às vezes, Lisbela. Que também é forte e destemida, quando decide que é aquele quem ama, que naquele momento não, que compreende a sensibilidade do olhar do médico-monstro e, portanto, saberia cuidar bem daquilo que começa, terminando e aperfeiçoando tudo o que sabe com muito amor e esperança. Mas a paixão desenfreada de minha Inaura só me faz gritar, desafiar, riscar fósforo* e sair desembestada pelo mundo, procurando qualquer coisa que nem sei o que é, talvez a liberdade.

Na Paraíba chamamos isso de riscar fósforo
© um velho mundo
Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo