26.11.17

Quando eu era pequena

Ricardo Siri Liniers
Numa das diversas pausas da estruturação do tcc, encontrei essa coisa linda que Liniers postou hoje. Lembrei de mim.

Quando eu era pequena, corria da minha sombra, porque achava um desaforo ela passar na minha frente, e eu que devia chegar primeiro nos lugares. Nesses momentos a Helen de três, quatro anos, vivia com os olhos grudados no asfalto, preto, brilhoso, iluminado pela lua.

King Crimson - Larks' tongues in aspic, 1973
Também competia com a Lua. Eu andava, ela andava. Eu parava, ela parava. Por que me perseguia, pelo amor de Deus? Quem tinha que seguir em frente era eu. Papai dizia que Mãe Neguinha, minha bisavó - se não me engano, ou era conversa dele -, dizia que Sol e Lua eram um casal apaixonado. Mas brigaram, é por isso que há dia e noite, e desde então caminha a humanidade. Com um reatar desse relacionamento, ou seja, com Sol e Lua no nosso céu ao mesmo tempo, dinossauros voltariam a habitar o planeta. Acho que mamãe me explicava que não era a Lua que andava para me seguir, e sim a Terra girando, dia e noite, e eu dentro dela.

Eu dentro de mim. Quando era pequena, mais nova ainda, achava que era uma índia, com os cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar.  Passava em frente a qualquer espelho e via que não, então saía correndo, indignada. Eu queria ser índia, por algum motivo.

Por algum motivo, a despeito dessa revelação, eu adorava brincar com espelhos. Aquele espelho de moldura plástica laranja, eu sentava no chão de casa, lá em Paraisópolis, cimento queimado. Posicionava o espelho de todas as formas e via o mundo lá de dentro, com umas perspectivas que hoje tenho o enxerimento de dizer que eram até construtivistas. O mundo avesso, tão maior, tão cheio de novidades. Eu queria entrar lá dentro e viver ao contrário. A porta da direita que era na esquerda, esse tipo de coisa.

Dario Argento - Profondo Rosso, 1975. (David Hemmings)
Tinha também os sonhos. Falei aqui da última vez como sou uma (in)cansável sonhadora. Os sonhos de minha vida foram na infância. Teve um que eu realmente guardo no peito, se alguém tratar de simbologias por favor me contate. Estava de carro com papai e mamãe, minha irmã ainda não existia. Um calor dos infernos, a estrada para lugar nenhum. A paisagem era areia. Não dunas, mas aquela terra infértil de chão batido, de abandono. Papai parava o carro no meio da estrada onde existíamos apenas nós três. Parava posicionado em frente a um edifício, mas numa simetria digna de filmes do Kubrick. Este edifício era absolutamente retangular em todas as suas formas, preciso e interminado. Ninguém na obra. Blocos de cimento, tudo cinza e poeirento como cimento que nunca viu água. Novamente a minha visão construtivista do todo (provavelmente porque eu era criança e tudo era gigante e infinito de minha perspectiva), e nós três encostados no carro olhando, como Ferris, a namorada Sloane e o melhor amigo Cameron (ou seja, eu mesma) observando um a obra de arte em um - cóf cóf - museu.

Eu pensando no meu sonho até hoje, já são 20 anos.
"The closer he looks at the child, the less he sees, of course, with this style of painting. But the more he looks at it, there’s nothing there. He fears that the more you look at him (Cameron), the less you see. There isn’t anything there. That’s him."
Tive outros sonhos com edifícios. No passado era às vezes, hoje em dia é todo dia. Impressionante mesmo, acho que vivo uma vida número dois quando fecho os olhos. Edifícios hoje são meu tema de tcc, com a limitação de me ater a bibliotecas públicas. Porque edifícios sempre me impactam, desde as igrejas, que só me interessam se são "muito arquitetônicas", como o meu favorito Mosteiro de São Bento, até aquela exposição sobre o construtivismo russo com fotografias de Aleksandr Rodchenko na Pinacoteca do Estado de São Paulo (comigo não é "Pina_" nunca não, falou) em 2011 que jamais esqueci. Porque construtivismo russo basicamente traduz meus sonhos.

Assim como o filme que Orson Welles (que homem) fez em adaptação de O Processo, de Franz Kafka (que homem, que livro, também me lembro o exato momento em que encontrei numa prateleira lá no fundo do Sebo do Messias), com edifícios surpreendentemente grandes em vista da pequenez de Josef K., aquele magrelo ombrudo lindo denominado Anthony Perkins; filme esse que ilustrará meu artigo em sua revista digital.

Orson Welles - The trial, 1962. (Anthony Perkins)
Porque é aquele negócio, como diz Alceu - sempre ele, em tantos momentos simbólicos de minha vida -,
Sinto o frio entrando pelos ossos
Como uma coisa um troço
Não sei explicar

Contudo, estou sabendo explicar de alguma forma, porque existe uma coisa chamada marxismo e outra materialismo histórico, e uma pessoa chamada Pierre Bourdieu, outra chamada Raquel Rolnik e outra Gregori Warchavchik, que por acaso nasceu em Odessa, cidade Ucraniana que tem essa maravilhosa escadaria de Potemkin, a mesma de Eisenstein, com a maior fotografia de todos os tempos:
Aleksandr Rodchenko - The Stairs/Steps, 1929/30.
Quando eu era pequena, era século XX. O meu século, o século que dá aquele esquisito no peito, o fim do segundo milênio. Tudo isso é sobre aquilo. Sempre estou lá. Todas essas coisas são, talvez, o mundo de meu espelho. E eu dei uma paradinha no artigo, que devo terminar até amanhã, para escrever descompromissadamente para ver se agora vai. Pretendo voltar aqui com o trabalho entregue, com o link para leitura, com sossego e com férias.

Me desesperei de modo abissal em 2017, por motivos infinitos: do cuore, de família, de trabalho, de escola técnica, de mim mesma. Me desesperei para escrever, me desesperei escrevendo, me desesperarei com o tempo e com a entrega. Mas é assim que me sinto viva, se não tivesse esse tum-tum-tum-bate-bate meu coração, que zabumba bumba esquisito, batendo dentro do peito, eu nada seria.

4 comentários

  1. A construção que liga os diversos parágrafos dos teus textos é única, de um estilo próprio que a gente reconhece de longe. ;)

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    1. eu fico feliz de ler isso, Carolina, porque um dos problemas entre orientadora de tcc e eu é que ela mandava eu conectar mais os parágrafos! hahaha

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  2. Que texto, ein, Helen?
    Tô torcendo pra ver você aqui logo, dando boas notícias sobre o fim do tcc e finalmente livre para curtir as férias!

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    1. como você já viu no texto seguinte, terminei! :D agora o sossego, esse estou trabalhando para ter, finalmente. :)

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Tema base por Maira Gall, editado por Helen Araújo